sábado, 4 de junho de 2016



Tradução José Filardo

– por Marie-Dominique MASSONI


As Núpcias Sagradas

O desejo feminino alimenta, desde a noite dos tempos, uma literatura abundante onde o fascínio, horror e condenação conduzem uma estranha dança, refletindo uma concepção ancestral das nossas sociedades tendo confinado a mulher a um papel único, o da maternidade e de assistência alimentar, negando-lhe qualquer capacidade de pensar o mundo e agir sobre ele. O imaginário coletivo, assim, opôs homens e mulheres em seus atributos até na sua privacidade. Uma visão destruidora, se não simplista, ao contrário do ideal da unidade procurado por todos os maçons. O iniciado, desde os primórdios do seu compromisso e ao longo do seu percurso vai tentar trazer para fora o seu eu interior. Essa busca que pode ser comparada ao nascimento, não pode, então, ser considerada simbolicamente uma libertação do conteúdo feminino em cada um de nós, homens e mulheres?

A mulher receptáculo da procriação

Sócrates comparou-se à sua mãe Fanarete, cujo trabalho era ajudar as mulheres em trabalho de parto, o que permitia a cada um dar à luz suas análises e avaliar sua viabilidade. No Theaetetus, quem quer filosofar é comparado a quem quer nascer. Infelizmente, este nascimento do pensamento foi negado às mulheres até o século passado, como se o futuro da mulher se resumisse desde a antiguidade, em última (ou primeira) instância aos mesmo estereótipos de reprodução da espécie. O logos poderia não ser viril? Existe ele sem pensamento de dominação? De acordo com Kierkegaard, qualquer mulher que se atreva a pensar se masculinizaria. “A mulher explica o finito, o homem persegue o infinito. (…) Devido a que ela explica o finito, a mulher é a vida mais profunda do homem, mas uma vida que deve ser escondida e secreta, como é sempre a vida da raiz. E é por isso que eu odeio todas as propostas abomináveis sobre a emancipação das mulheres”. *

No entanto, pode ser que os homens que apresentam tais propostas tenham concentrado uma parte importante da sua visão das mulheres sobre seu próprio desejo pelo feminino; e seu poder de dar à luz, relíquia, quem sabe, de tempos mais antigos quando não se sabia nada sobre o papel do homem na fecundação. Quaisquer que sejam as antigas teorias, todas, de fato, estipulam que a mãe é somente o lugar de gestação, não um dos agentes da concepção. Não foi senão até o final do século XVII e no século XVIII, com as obras de Spallanzani, que as teorias de Aristóteles – que nunca tinham sido contestadas – provaram ser falsas.

Feminino e alquimia

Na Maçonaria e graças a ela, as mulheres assumem assim como os homens na medida de seus campos de possibilidades. A entrada delas na ordem iniciática certamente não foi fácil. Quem não ouviu falar que a mulher não devia ser iniciada porque ela o é naturalmente quando dá à luz? Dar à luz seria expor a sua parte do feminino? E seriam assim criadores, poetas, ou ainda o candidato quando ele cruza o limiar do templo, quando ele dá à luz a si mesmo, nada vendo como um recém-nascido e tendo a necessidade de ajuda e assistência uma parteira para orientar a sua entrada na vida?
A questão da geração, da gravidez, do parto, da colocação no mundo de um outro ser ou a si mesmo pode, no entanto, levar a uma série de reflexões, de perguntas e respostas diversas, contraditórias, de homens bem como de mulheres. A questão da iniciação como auto nascimento pode nos permitir começar a nos aproximarmos do trabalho do feminino em cada ser humano. Nesse lugar, a alquimia serve de guia, mesmo porque a sua bela iconografia mostra um outro feminino completamente diferente daquele que mencionamos acima.

O que é geralmente associado ao feminino é mais frequentemente receptivo, passivo, fluido, indescritível, imaginativo, silencioso demais e falador demais e, além disso, degradado, espelhado, caindo em repetição, em reprodução. O homem engendra assim o masculino. O pensamento, a busca, a conquista, a responsabilidade política e social surge, assim do masculino. O feminino é, no entanto, uma terra fértil, nutritiva. Para os gregos, os homens enfornavam o pão na barriga de suas esposas. As associações masculino-dominante e feminino-dominado são decalcadas sobre os papéis sociais. Na alquimia, o mercúrio é certamente fugidio, inquieto, e também bastante receptivo; pode ser suave, passivo, mas é também violento. As duas naturezas lutam e se esposam para se transformar no “Rebis” a coisa dupla. Estamos aqui a anos-luz das teorias de Aristóteles! Os textos da Cabala e os do Zohar nos ajudam também a compreender o jogo do masculino e do feminino em cada ser, e o entendimento do fato de que o que é percebido sob um desses qualificativos assume a qualidade oposta, de acordo com sua situação. A Maçonaria nos habituou a tais reversões de perspectiva, preparando lentamente a união dos opostos.

O método maçônico, progressivo, deveria, no entanto, permitir a cada um chegar até si mesmo para que sua Eurydice retorne à luz e que possam ter lugar as suas núpcias sagradas. Mas a estrada é longa e perigosa. Ela começa na “loja mãe”. Uma bela imagem que revela a função maternal da assembleia de maçons. Eu li poucos trabalhos sobre a aparição do trigo novo, saindo da terra como Perséfone na primavera, esperado, observado, aguardado por cada membro da loja desde que sua candidatura foi aceita, e sobre o tremor que percorre a assembleia presente no templo quando ele se prepara para ouvir suas primeiras e últimas palavras, escritas durante a sua passagem pela terra mãe. A emoção (ainda considerada uma qualidade de pouco interesse) assume um sentido forte, porque cada um colocou-se em movimento interior em direção à promessa trazida pelo neófito. É o que Levinas chama de “a movimentação das entranhas da maternidade”; cada um a vive, seja homem ou mulher. Quando o Rosto nu se dá a ver, impotente e luminoso, à mercê de todos em sua luminosa confiança, não é incomum ver um ou outro irmão enxugar uma lágrima. A loja colocou no mundo um novo elo na cadeia maçônica, que será por vezes criado, recebido, constituído maçom, irmão, irmã, “filho da viúva.” Sem emoção não é humano, mas petrificação cadavérica. O crânio de Orfeu fala …

Procurar seu feminino exige ir humildemente em direção si mesmo, ao mais fundo, silenciar sua racionalidade, seu espírito dedutivo, empreender vias menos seguras, enfrentar seus preconceitos, atrever-se a tomar os caminhos da analogia, aceitar ir ao encontro de seu irracional, pousar armas e bagagem, e toda armadura desfeita para dizer e se atrever a dizer voltando-se para seus irmãos: “Aqui estou” assim como em mim mesmo o feminino me muda.

Certos símbolos são qualificados como femininos por alguns, ao passo que outros provocam clamor. Outros (por vezes, os mesmos) celebram as virtudes mais altas, o funcionamento da razão mais cortada de mentiras e interpretações delirantes dos humanos, mas eles são capazes de secretar o oposto: a fé transformada em baixa credulidade ou fanatismo assassina seus heréticos, a força torna-se loucura mortal e, por vezes, metódica, enquanto a razão, simbolizada pela luz solar se junta a ela. Uma parte essencial da viagem iniciática nos ensina a perceber o verso e reverso de símbolos, palavras e gestos, e sua colocação em dinâmica na colocação dos signos em ação.

Por muito tempo confundimos feminilidade e passividade. Ao masculino são dedicadas as categorias relevantes da atividade, o dom da semente; ao feminino a passividade, o recebimento da semente; consequentemente, o homem seria ativo e a mulher passiva. Teremos que fazer um desvio através da história e mitos gregos, um outro pelo hermetismo para mostrar que a questão é um pouco mais complexa. O feminino sem cessar se diz passivo, receptivo, talvez mais ativo que o masculino; e a atividade, voltada para o interior, pode parecer passividade a quem não a vê!

Tomemos a lua. Os clichés que se relacionam a ela, do lunático ao sonhador, passam por uma visão pejorativa de instabilidade. No entanto, a alquimia indica a necessidade do mercúrio. Se ele não é encontrado, se fugir, nenhum trabalho poderá ser considerado. Aqui, o feminino não é reduzido às únicas características de clichés, ele pode ser ativo, violento, como Artemis poderia ser.

Do setentrião, geralmente considerado como a ordem do feminino, porque não recebe luz solar direta, Guy-Rene Doumayrou lembrou a etimologia septem triones, os sete bois do trabalho. Cada um deve aqui trabalhar sua terra: o ativo no passivo. Os rituais despertam o espírito retirando-o de seu torpor solar. Ao meio-dia, esmagado por uma luz ofuscante, o espírito deve se abrigar para evitar ser presa de miragens enganosas.


Razão e sensibilidade

O casal heterossexual que serve como um modelo para a apreensão do mundo permitirá que, a partir da manifestação, de retornar ao inefável, via o feminino e o masculino (não o homem e a mulher), enquanto que o intelecto seco se precipita para eliminar tudo o que faz amor, em nome do espírito e da ordem mundial. O que o ser humano sente, vive; as forças que o movem e o ajustam em rota para o desconhecido que ele sente ser simplesmente negado, dificilmente foram sugeridas. Como poderia o homem ir ao encontro de seu feminino, do feminino do ser, se uma couraça de metal morto impede que ele respire? Como, enquanto é lícito para alguns comentadores mostrar a influência da filosofia grega, os autores da Cabala ou do esoterismo muçulmano sobre o pensamento e a formulação, obscurecem a questão do feminino do ser ou o desejo que coloca em movimento? A Alquimia não hesita em nos fornecer uma iconografia abundante, onde a busca do feminino, a união dos dois princípios é feita de combates tais como de desejo, de união, de morte, de nascimento, de nutrição, de jogos infantis. A pedra ama, sofre, chora, sangra… As imagens aqui não são meras ilustrações, mas destacam o drama (palavra cujo etimologia significa ação) sagrado da vida de todo humano, e que se repete no trabalho sobre a matéria. “O que é a genialidade, se não há uma abertura maior do coração?”, dizia Hugo. É isso que a poesia maçônica nos oferece, não os versos dos maçons, mas o conjunto da missão.

As categorias do real e do imaginário se decalcam sobre as da diferenciação sexual via aquelas de masculino e feminino, incluindo e especialmente enquanto o historiador de ideias, religiões, ou o filósofo se sente compelido a “deserotizar” textos nos quais a experiência mística e sua teorização se colocam mais perto palavras de amor que, como os corpos dos amantes, as palavras fazer amor depois de serem despojadas de seus artifícios. Uma vez mais, é fácil de abrir um livro de alquimia ou o magnífico Sonho de Poliphile reeditado recentemente.

O feminino deve se curvar diante do masculino, porque ele sempre vem em segundo lugar, em degradação, encarnação. O homem que rejeita seu feminino é chamado “lutador”, mas ele constrói sua vida sobre relações dominante-dominado, mestre e escravo, e encontra ainda em seu caminho mais “matador” que ele, ou aciona mais rapidamente que a sua. As lágrimas de Aquiles nos perguntam sobre o lugar do feminino na Ilíada e mais amplamente nas epopeias e tragédias. As das Pietás lhes fazem eco.

A Maçonaria afirma ser universal. Universalidade não mais característica do homem branco, imbuído ele mesmo de seus valores e práticas, como era ainda um século atrás. Não importa que os rituais maçônicos tenham sido escritos por homens para homens, se eles permitem o encaminhamento para o andrógino que celebra o hermetismo?

Uma outra crítica, que se baseia em outras hipóteses, nos reenvia ao andrógino. Os verdadeiros filósofos, os verdadeiros iniciados, estando despojados a caminho de sua pequena história, de suas pequenas emoções, de sua sensibilidade humana demais, se voltariam inteiramente para o iniciático, a estrutura oculta da construção, o modelo matemático da emanação.

Que o andrógino seja um mito fundador, como é em Platão ou em certos cabalistas, ou que ele possa ser realizado em um momento do percurso do alquimista, ele se torna na racionalidades dos inimigos das mulheres, como ser superior, e curiosamente reforça a ideia segundo a qual as mulheres, então, não tem mais razão de ser considerando-se qualquer fase da evolução espiritual… Não mais que o masculino? Aqueles que assim procedem compreenderam muito pouco os textos e imagens da alquimia! Regozijando-se em repetir dois ou três clichês, eles ainda não teriam descoberto sua matéria-prima… Como poderiam eles esperar alcançar a conjunção dos opostos, as núpcias sagradas, que celebram os textos e imagens?

Se certos rituais são conduzidos com um feminino ausente, mas ativo, quais perguntas levantariam eles quanto ao aperfeiçoamento dos maçons? Finalmente, se convencionarmos que para se afirmar em um mundo patriarcal, as mulheres tiveram que desenvolver o seu animus, que lhes teria facilitado o acesso aos símbolos chamados masculinos, não teriam elas que estender um pouco a mão aos homens para lhes permitir acessar seus femininos?

Orfeu não foi capaz de trazer de volta sua alma irmã dos infernos. Se o poeta não soube, algum homem não o poderá? Sua história termina com o despedaçamento das terríveis bacantes. No entanto, seu crânio oracular ainda canta… e habita nossa ilha imaginária, como granadas encerrando em sua casca cor de turfa, em suas lojas encerradas em um véu translúcido mas amargo, uma doçura suave e uma amêndoa, promessa de luz.

Para ir mais longe, do mesmo autor: 
O feminino e sua busca na maçonaria, edições Detrad



Publicado em 24 de fevereiro de 2016 em REVISTA FRANC-MAÇONNERIE

SIMBOLOGIA MAÇÔNICA E LITERATURA


Autor: José Antonio Filardo.


Em Maçonaria, o ritual é o esqueleto, a simbologia é a carne e a fraternidade é a alma. Tudo isso para desfrutar a liberdade e promover a igualdade.

Respiramos simbologia, e o maçom precisa desenvolver a capacidade de interpretar o que lê ou visualiza em termos do código que aprendemos em nosso dia-a-dia nas lojas.

Aprendemos, desde o momento de nossa iniciação, que tudo à nossa volta está envolto pelo véu do simbolismo, que tudo tem um significado, que tudo é passível de interpretação. Pouco a pouco, o pesado véu vai sendo afastado e adentramos um mundo totalmente diferente daquela rotina a que estamos habituados.

Naturalmente, novos véus, mais diáfanos se apresentam diante de nós em nossa senda, mas, aparelhados com o ferramental adequado, progredimos e refinamos nossa capacidade de interpretação.

Temos que a interpretação da simbologia deve ser uma segunda natureza do maçom. E considerando a presença dos símbolos em todas as manifestações culturais e em seus “produtos”, realizamos um exercício de análise literária com enfoque maçônico.

Escolhemos como nossa “vítima” nada menos que o maior escritor moderno quem, pessoalmente considero o maior escritor da história da humanidade, James Joyce.

Com exceção de “Finnegans Wake”, seu terceiro e último livro que é impossível de ser traduzido e até mesmo de ser lido por alguém que não seja nativo de um país de língua inglesa, temos uma obra deliciosa, divertida, engraçada, surpreendente que desenha o universo a partir da narrativa e um único dia na vida do Irmão Leopold Bloom, na Dublin do início do século XX.

O que aconteceu foi que Joyce revolucionou a maneira de escrever livros, e o público estava acostumado como a produção “água com açúcar” de Jane Austen e outros autores, e não estava preparada para o texto espontâneo, jocoso e subversivo de Ulysses. Para este público, sim, o livro era “difícil” e escandaloso. Tanto isso é verdade, que foi classificado como pornografia e teve sua entrada proibida nos Estados Unidos.

Ninguém estava preparado para a narração detalhada da personagem sentado no vaso da privada defecando, por exemplo. E com a descrição da sensação, a narração pormenorizada do evento. Ou da narrativa detalhada de uma relação sexual do ponto de vista da mulher, com todos os detalhes, ou a masturbação disfarçada, brilhantemente descrita em um texto saborosíssimo.

É claro; depois de inventada, a roda pareceu a todos uma solução incrivelmente lógica. E todos os autores passaram a escrever como Joyce. Dessa forma, um leitor que decida enfrentar o dragão nos dias atuais certamente se perguntará sobre os motivos que levaram os críticos a dizer que o livro era difícil.

Um dos problemas, entretanto, na abordagem deste ícone da literatura é o relativo desconhecimento da obra dele, vez que os rótulos “difícil”, “hermética”, “complicada” criaram barreiras, mesmo entre pessoas geralmente acostumadas a consumir o produto cultural literatura.

Esta circunstância nos obriga a traçar um panorama da vida e obra do autor, antes de nos debruçarmos sobre o objetivo de nosso trabalho, qual seja demonstrar aspectos simbólicos de natureza maçônica na obra do autor, pois análise literária tem tudo a ver com interpretação de símbolos.

E aproveitaremos a oportunidade para estender nossa análise a um dos símbolos tão caros da maçonaria brasileira, qual seja a Corda de 81 Nós que ornamenta as oficinas maçônicas de todo o Brasil.


Um dos maiores, senão o maior escritor de nosso tempo foi James Joyce, irlandês, nascido em Dublin em 2 de Fevereiro de 1882 e falecido em Zurique, Suíça em 13 de Janeiro de 1941. Passou a vida toda pobre, lecionando inglês em escolas de línguas, enquanto escrevia as obras mais importantes da literatura mundial.

Escritor genial, ele fez de sua própria vida um símbolo, ao exilar-se da Irlanda em protesto contra o espírito provinciano dominado pela Igreja Católica, domínio este existente até os nossos dias e que representava e representa ainda hoje um fator de atraso para aquela sociedade. A Irlanda era considerada o país mais atrasado da União Européia, antes da entrada de países do Leste Europeu e é, hoje, um dos componentes do grupo chamado PIIGS (Portugal, Ireland, Italy, Greece e Spain) dentro do bloco – os países mais pobres e com maiores problemas econômicos.

Sua declaração de propósito, ao abandonar a Irlanda, aparece ao final de seu primeiro livro, O Retrato do Artista Quando Jovem, nos lábios da personagem Stephen Dedalus: “Assim seja. Bem vinda, ó vida! Vou, pela milionésima vez, ao encontro da realidade da experiência, e forjarei na fornalha de minha alma, a consciência incriada de minha raça.”

Em seu segundo livro, Ulisses, Joyce recriou a cidade de Dublin como se recordava dela, detalhe a detalhe, pessoa a pessoa, reconstituindo seu mundo mitologicamente e narrando um dia inteiro da vida das personagens Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus. E este dia, ele o coloca simbolicamente como 16 de Junho de 1904, o dia em que conheceu Nora, sua única esposa e mãe de seus dois filhos.

Joyce era uma pessoa detalhista, não resta a menor dúvida. Seus amigos e correspondentes revelaram que ele era capaz de levar dias e até semanas para escrever uma única frase, burilando-a e pedindo a opinião deles sobre cada palavra. Algo como aquele contador da empresa que vem falar sobre uma diferença de um centavo em um balanço de alguns milhões.

Mas, isso revela um aspecto fundamental: nem uma vírgula sequer em toda a obra está lá por acaso. Tudo foi escolhido com aquele espírito do contador. Cada centavo, ou cada palavra, pausa, ponto existe por uma razão. E, como tal, deve ser interpretada ou enquadrada na intenção do autor.

Em linhas gerais, o que temos é uma obra dividida em três livros. Além deles, existe uma peça de teatro, “Exiles”, um livro de contos, “Dubliners” e um livro de poesias, “Chamber Music”.

O primeiro livro recebeu o nome, inicialmente, de “Stephen Hero” ou o Herói Stephen, e narrava a trajetória do jovem Stephen Dedalus, aprendiz de escritor, até o momento em que este abandona a Irlanda, da mesma forma como o escritor viria a fazer. Posteriormente, talvez convencido de que deixara sua própria vida influenciar a criação da personagem, ele troca o título para “Retrato do Artista Quando Jovem”.

Neste livro, a simbologia é limitada, são os primeiros passos e a escolha do nome da personagem é sintomática. Stephen (Estevão) é o nome do primeiro santo da igreja católica e Dedalus (Dédalo), na Mitologia Grega, era um famoso arquiteto e inventor cuja obra mais famosa é o famoso labirinto do Minotauro que construiu para o Rei Minos, de Creta. Era pai de Ícaro, com quem acabou ficando preso no próprio labirinto que criou. Para escapar de lá com seu filho, construiu dois pares de asas utilizando-se de cera. Contudo, quando os dois estavam voando para longe do labirinto, Ícaro, empolgado com a possibilidade de voar, acabou voando alto demais e o Sol derreteu a cera de seu par de asas, fazendo com que caísse no mar, perto da ilha que hoje se chama Icário.

A personagem, portanto é um símbolo do homem, ao mesmo tempo pagão e católico, preso no labirinto da religião e do provincianismo da sociedade irlandesa, mas que deseja alçar vôos mais altos e, para isso, vai estudar no Continente.

O segundo livro, “Ulysses” é, de certa forma a continuação do primeiro. Stephen retornou de Paris às pressas, devido à morte de sua mãe. Ele foi chamado pelo pai, mas em seu anti-clericalismo e revolta contra a igreja, recusou-se a se ajoelhar e rezar a pedido de sua mãe agonizante. Ela morre e ele se sente culpado por isso.

O livro narra um dia na vida da cidade de Dublin, capital da Irlanda, o dia 16 de Junho de 1904, tendo como personagem principal, que guia o fio da narrativa um prosaico judeu de meia idade, corretor de anúncios, maçom, Leopold Bloom e sua esposa Marion, ou “Molly” Bloom. Leopold é um pai em busca do filho que perdeu bebê ainda, e Stephen é o filho que procura a figura de um pai, uma vez que não se dá bem com seu próprio pai. Leopold é Ulisses retornando da guerra de Tróia, Stephen é Telêmaco, Molly é Penélope. E a rotina daquele dia adquire uma dimensão mitológica.

As trajetórias de Stephen e Bloom se entrecruzam ao longo do dia em diferentes locais e momentos, convergindo ao final para um encontro no bordel, de onde Bloom leva Stephen até sua residência e de onde este continuará a vagar sem destino pela vida.

No último capítulo, fechando a obra, temos um longo monólogo da mulher de Bloom, Molly. Nele o autor mostra seu fluxo de pensamento, encadeando uma coisa atrás da outra, sem pontuação, exatamente como ocorre quando pensamos. Ela recorda cada instante do dia, de sua história, recordações, momentos tórridos de uma relação sexual com o amante na ausência do marido naquela mesma tarde, enfim, milhões de detalhes em um fluxo de consciência.

Este monólogo foi uma das novidades, e ao mesmo tempo um escândalo, em termos de literatura que Joyce trouxe ao mundo, novidades que foram responsáveis pela proibição do livro, como pornográfico, em 1922 pelas autoridades americanas, e impedido de entrar nos Estados Unidos.

O livro é considerado “difícil” pela maioria das pessoas, mas isso decorre do fato de que ao surgir, ele realmente revolucionou a forma como a literatura era escrita. Subverteu as regras a que o público estava acostumado, e mudou para sempre o panorama da literatura.

As pessoas tendem a dizer que a obra é difícil sem sequer tê-lo folheado.

Porém, ao contrário, Ulysses é um livro saborosíssimo, engraçado, picante, divertido, com partes de difícil interpretação, é verdade, mas em seu todo, pode-se dizer que é bastante legível.

Depois que Ulysses foi publicado, todos os autores passaram a escrever como Joyce, mesmo não atingindo o mesmo grau de virtuose do mestre.

O livro foi absolutamente revolucionário em sua época, tendo sido superado estruturalmente e em termos de recursos utilizados, somente pela Internet, nos dias atuais. Na verdade, Joyce empregou recursos que hoje fazem parte da rotina de sites, ou seja, a inclusão de música ou fotos nos textos por meio de hiperlinks. Ele incluiu partituras musicais no texto, listas de compras, enfim, espécies de hiperlinks.

E o que são hiperlinks? São estas palavras sublinhadas, em azul, como esta que produzem uma nova página da internet quando clicamos o mouse nelas. Imaginem o que Joyce faria, se tivesse em mãos um recurso como esse…

O nível de simbologia vai desde a superposição da obra ao original grego de Homero, a Odisséia, até mínimos detalhes que incluem os “indícios maçônicos” de que falaremos a seguir.

O terceiro livro, “Finnegans Wake” é baseado em uma balada irlandesa que narra a história de um dono de “pub” (bar inglês) e tem como tema a sua morte e ressurreição. A simbologia começa pelo nome do livro onde Finn (Fim) egans (again=novamente) Wake= velório e wake=acordar. O professor Donaldo Schülerconseguiu resolver o título, em uma transliteração bastante fiel: Finnicius Revém. Perdeu-se um pouco a idéia do velório existente no original, mas o resultado ficou ótimo.

Tim Finnegan, o herói, é um “freemen’s maurer”, ou seja, um franco-maçom em uma curiosa mistura de inglês e alemão. Na balada, Tim sofre uma queda e morre. Durante seu velório, há uma briga e alguém atira um galão de uísque; o galão se quebra e o líquido cai sobre Tim e o ressuscita reclamando que os caras são loucos por desperdiçar o uísque.

Hummmm! Já ouvi isso. Tabernas inglesas, Mestre maçom, morte, ressurreição. Ligeiramente familiar…

Provavelmente, algumas centenas de pessoas já leram Finnegans Wake e poucas entre delas conseguiram entender a maior parte do livro. É totalmente onírico, trata a morte e ressurreição de Tim Finnegan, mestre maçom, seus sonhos, seus medos, suas fantasias. Além disso, conta a história do mundo e da literatura. É um livro extremamente denso. Logo no início dele há uma data: 1132 D.C., e o significado é simbólico. O número 11 significa o retorno ou restabelecimento da contagem (tendo contado até dez em nossos dedos, temos que começar tudo de novo para o 11); 32 pés por segundo é a taxa de aceleração de todos os corpos em queda. O número 1132, assim, também nos lembra a queda e o recomeço.

Mais uma vez, o tema recorrente é morte e ressurreição.

Tem uma estrutura de moto contínuo, indicada pelo fato de que a primeira palavra da primeira frase do primeiro capítulo do livro é continuação da última palavra da última frase do último capítulo do livro (uma vez mais, a idéia de ressurreição, recomeço).

O livro é decididamente ilegível para os brasileiros, apesar de ter sido magistralmente transliterado pelo professor gaúcho Donaldo Schüler. Há que se admitir, porém, que Schüler terminou por escrever um novo livro usando a temática do original.

Como coloca o Prof. João Alexandre Barbosa em comentário na orelha da segunda edição do livro de Schüler: “Os estilhaços de sessenta e cinco línguas diferentes (segundo a tradição dos estudos joycianos) se espalhando nos sombrios intervalos entre consciente e subconsciente contam a história do mundo e da literatura, sempre a partir da sensação de exílio e de estranhamento que para Joyce era a Irlanda.”

Ele exige, mesmo para falantes ingleses, uma erudição fora do comum para seu entendimento. Joyce mistura idiomas, cria palavras novas resultantes da fusão de palavras já existentes, e que adquirem um novo significado. Imaginem alguém fazendo trocadilhos à razão de dois ou três por minuto… Este é o livro.

Ele já fizera algo parecido, mas em muito menor escala em alguns capítulos de Ulysses; em Finnegans ele atinge o paroxismo, e transforma o texto em um emaranhado de segundos, terceiros, quartos significados e camadas, capazes de enlouquecer o leitor.

Chegamos à conclusão que o conjunto da obra é um triptico que indica uma progressão do aprendiz (O Retrato), passa pelo companheirismo do mestre Bloom socorrendo Stephen e o conduzindo a um porto seguro (Ulysses) e, finalmente, desenvolve no terceiro livro um dos temas mais caros para a Maçonaria Universal.
Indícios maçônicos

Não há registro de que James Joyce tenha sido maçom. Pelo menos, nenhuma loja reivindicou até hoje esta honra.

Mas, apesar de aparentemente não ter sido maçom, a estrutura tríptica de sua obra apresenta pontos de contato com a cultura maçônica. A personagem de seu Ulysses, Leopold Bloom, é maçom e a personagem principal de seu terceiro livro, Tim Finnegan, também é maçom. A temática de seu terceiro livro tem profundos ecos de maçonaria. O conjunto da obra de James Joyce tem mais conteúdo maçônico que muitos livros de autores comprovadamente maçons.

É preciso não esquecer, como mencionamos no início do trabalho, que não existe acaso na obra dele. Cada pormenor foi pensado e colocado ali com um propósito.

Não pretendo entrar em detalhes sobre todo o conteúdo, pois não o poderia fazer sem penetrar umbrais que não podemos, por nosso juramento, desvendar. Terei que limitar um pouco minha análise.

Em Ulysses, começa-se a perceber que a personagem Leopold Bloom é maçom, quando ele faz referência a uma sessão de sua loja (em que foi discutida uma rifa em prol de alguém necessitado). E, como bom maçom, Bloom passa o dia tentando resolver um problema da viúva de um amigo.

Esta menção de sua condição de maçom coloca em contexto os seus devaneios, momentos antes, que o levaram a uma paisagem oriental. Note-se que maçons ingleses identificam-se não com o nosso tradicional “justo e perfeito”, mas com frases contendo referências a “ir do ocidente ao oriente”.

Posteriormente, na obra, ouvem-se comentários sobre sua condição de maçom e judeu, feitos por um preconceituoso anti-semita nacionalista irlandês:

“- O que esse maldito maçom está fazendo – diz o cidadão – rondando pra cima e pra baixo do lado de fora?”

Ao sair de um pub, no almoço, ele “se despede com três dedos”.

No episódio do bordel, onde a narrativa é absolutamente onírica, pinçamos algumas referências significativas:

“Está vestido como um grande eleito perfeito e sublime maçom, com colher de pedreiro e avental”;

“Silencioso, pensativo, alerta ele fica de guarda, os dedos nos lábios na atitude de mestre secreto” ou ainda “deita-se, fazendo-se de morta, com olhos bem fechados, pálpebras trêmulas, dobrada no chão na atitude de excelente mestre.”

“Ele dá o sinal de guerreiro peregrino dos cavaleiros templários”

“eles trocam entre si as senhas dos cavaleiros da cruz vermelha”

“ (e então, pondo a mão no coração e erguendo o braço direito com o cotovelo dobrado, faz o sinal do segundo grau da maçonaria), Não, não, venerável mestre,”

“(ele murmura a palavra de passe dos Efraimitas) Schtbroleeth”(Aqui o autor faz um de seus trocadilhos.)

Mais tarde, após sair do bordel, ele socorre o jovem Stephen, bêbado na rua, com a ajuda de outro maçom e, finalmente, sua esposa Marion, no monólogo final comenta “eu o instigara a fazer isso até que os jesuítas descobriram que ele era franco-maçom…”.

A má notícia para a imagem do maçom Leopold Bloom é o fato de ser enganado por Molly, que dava seus pulinhos aqui e ali. Ela, naquele dia, aproveita a ausência do marido para traí-lo com seu agente musical. Enfim, ninguém é perfeito.

Procuramos demonstrar em nossa análise literária de fundo maçônico, que podemos aplicar nossa metodologia de interpretação às obras culturais de nosso tempo, com a mesma naturalidade com que interpretamos símbolos da mitologia grega ou romana, runas vikings, ou hieróglifos egípcios da mesma forma como interpretamos os símbolos maçônicos.

Dessa forma, podemos levar nossa interpretação ao limite, se olharmos com lentes maçônicas os eventos que cercam o momento em que Leopold conheceu sua esposa Marion. Senão vejamos:

A esposa de Bloom se chama Marion Bloom, (M.´. B.´.). Eles se conheceram em Gibraltar, também conhecida como A Rocha (a pedra). Gibraltar por sua vez, sempre foi conhecida como asColunas de Hércules e representava a porta de entrada do Mar Mediterrâneo, no sentido Ocidente para o Oriente. Se pensarmos no Mediterrâneo como uma loja, teremos Jerusalém no Oriente, a Rocha colocada fisicamente ao lado da coluna do norte.

Teria Leopold conhecido M.´, junto à pedra, ao lado da coluna do Norte?

Bibliografia:

Joyce, James – Ulysses – Penguin Books – London (Publicado em Paris – 1922), 1973
Joyce, James – Ulisses – Tradução Prof. Antonio Houaiss – Círculo do Livro, São Paulo, 1975
Joyce, James – Ulisses – Tradução Profa. Bernardina da Silva Pinheiro, [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda] – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, 912p.
Joyce, James – A Portrait of the Artist as a Young Man – Penguin Modern Classics – London – 1970
Ellmann, Richard – Ulysses on the Liffey, Faber and Faber, London – 1974
Burgess, Anthony – HERE COMES EVERYBODY – Faber and Faber – London – 1965
Levin, Harry – JAMES JOYCE, a critical introduction – Faber and Faber, London – 1960
Costello, Peter – JAMES JOYCE – Ed. Gill and Macmillan – Dublin – 1980
Eliot, T.S. – JAMES JOYCE a Selection of Joyce’s Prose – Faber and Faber – London – 1973
Gilbert, Stuart – James Joyce’s Ulysses – A Study – Penguin Books – Australia – 1969
Burgess, Antony – JAMES JOYCE, a shorter Finnegans Wake
Alleau, René – A Ciência dos Símbolos – Edições 70 – Lisboa – 1976
Schüler, Donaldo – Finnegans Wake / Finnicius Revém – Ateliê Editorial – São Paulo – 2004



Tradução José Filardo



Denis Diderot *1713 + 1784

1713-2013 … Há exatamente 300 anos, em 05 de outubro de 1713, Denis Diderot nascia em Langres. Ele morreria em Paris em 31 de julho de 1784. Uma vida incomum como escritor, primeiro em plena luz do dia, e depois quase escondido devido à censura ou mesmo a prisão que sob o antigo regime punia a liberdade de espírito grande demais e as maneiras do gênio que toma ao pé da letra o ideal do Iluminismo, e o torna o vetor. Estudos brilhantes tonsura devido a uma carreira eclesiástica desejada pelos pais. Mas já o jovem Diderot se rebela rejeita tal destino. Logo a sua consciência pessoal estará rapidamente livre da tutela religiosa. Assim começa uma jornada existencial e intelectual que radicaliza a pressa de viver e pensar livremente.

Os Pensamentos Filosóficos (1746) o atestam por uma crítica afiada da religião, entendida como poder obscurantista. A ousadia teórica é notável. O Parlamento de Paris condenou a obra e ordenou sua destruição. Mas Diderot persiste e assina. O “Passeio do cético” (1747) confirma. Lá está o autor libertino com um romance chamado “As Joias indiscretas” (1748) e depois filósofo materialista, que tende para o ateísmo assumido com sua Carta aos cegos para uso de quem vê (1749). Isso é demais para a chamada monarquia de direito divino. Em 24 de julho de 1749, Denis Diderot foi preso e encarcerado no castelo de Vincennes, por cem dias. Aos 26 anos, o jovem perdeu sua liberdade. Ele se enfureceu. Este homem fervilhante encara coisa muito mal. Durante seu cativeiro, ele recebeu a visita de seu amigo Jean-Jacques Rousseau, ansioso para expressar sua solidariedade.

Um gênio multifacetado

Durante toda a sua vida, Diderot será marcado por uma sede de liberdade multifacetada, traduzida de uma forma original que o torna inclassificável. Escritor polígrafo, antes de tudo filósofo (Pensamentos filosóficos, Jacques, o fatalista, O sonho de D’Alembert), ele é também um ensaísta (O Paradoxo do Ator, Suplemento à Viagem de Bougainville), romancista (A Religiosa), dramaturgo (O filho natural), crítico de arte (ele inventou o gênero, escrevendo Os Salões), e especialmente em 1750, tornou-se o diretor de uma enciclopédia monumental que fazia um balanço do conhecimento humano e esboça uma definição de ordem fecunda. Estas são as diferentes facetas de um gênio multifacetado, que afeta todos os tipos de escrita.

Filho de um cuteleiro que lhe inspira o respeito pelo trabalho manual ainda pouco apreciado no Antigo Regime, Diderot explora rapidamente todos os campos do pensamento e da cultura. Sua aparente dispersão de interesses caracteriza-se, de fato, em desejo de compreender o mundo e transformá-lo através de uma participação ativa na difusão das luzes por meio do compartilhamento do conhecimento. Denis Diderot o fez do seu jeito, ansioso para superar as limitações das representações mais comuns e cultivar um certo radicalismo dentro do pensamento crítico.

Mas que tipo de homem é ele? Diderot é descrito como o homem, ao mesmo tempo racionalista e entusiasta, um homem de reflexão e de inspiração, idealista no sentido moral e político e materialista no sentido filosófico da recusa das ficções ideológicas e pressupostos espiritualistas. Adicione-se a isso a audácia, a curiosidade sem limites, a generosidade da abnegação no trabalho pessoal, mas também na partilha de conhecimento e da reflexão. Sua pena é alerta. Ela se destaca na narrativa reflexiva e seus diálogos esposam a vivacidade da discussão intransigente. Somente, talvez, seu teatro, por seu didatismo excessivo pode parecer menos enlevado. Ele também se interessa pela ciência da natureza, pelo direito e pela arte política, o futuro das sociedades, a diversidade de costumes, a moral e a arte, a pintura e a arte dramática. Ele mesmo um espírito enciclopédico, cultiva o poder emancipador de saber tudo.

É também esse sonhador que constrói um mundo livre de preconceitos obscurantistas e ilusões etnocêntricas, conforme mostrado em seu admirável Suplemento à viagem de Bougainville (concluído em 1772, juntamente com a sua colaboração para a História das duas Índias do abade Raynal). Não para ficar no refrão do bom selvagem em oposição ao civilizado corrompido, mas para repudiar a ideologia de seu tempo e a justificação religiosa que a consagra. O diálogo com o Otahitien é exemplar nesse sentido. Ele lembra o “olhar distanciado” cultivada por Montesquieu em “Cartas Persas”. Em “Como se pode ser persa? ” responde ao comentários talvez ocidental? Costumes, sexualidade, casamento, moralidade passam sob o crivo de uma crítica audaciosa que nos apresenta o espelho das provas naturais e transforma em zombaria as hipocrisias convencionadas do Ocidente cristão.

A moralidade hedonista

Sensualista, Diderot exalta uma moral hedonista, onde a busca pelo prazer não implica imoralidade, muito pelo contrário. A maneira de Epicuro, ele parece dizer: “Seja feliz e desfrute, você provavelmente estará mais inclinado a fazer o bem.” Como no prodigioso Entrevista com a Marechala (1776) ou no artigo “Irreligiosos”, que ele escreveu para sua Enciclopédia, Diderot nega que a moral dependa necessariamente de um fundamento religioso. Além disso, se isso fosse verdade, por que tantos crimes infligidos pelos cristãos ao longo da história, as fogueiras da Inquisição, a ordem ordem repressiva dos conventos? Essa ordem é retratada em “A Religiosa”, o romance que por cautela Diderot não publicou diretamente, mas em episódios na Correspondência literária, filosófica e crítica de Friedrich Melchior Grimm entre 1780 e 1782. No século XX, mesmo a televisão francesa ousará censurá-lo em 1966, em uma adaptação para o cinema de Jacques Rivette para não desagradar as autoridades eclesiásticas!

Com Voltaire, Diderot critica a intolerância religiosa fundamental, mas ele o faz de modo mais radical. Do deísmo para o ateísmo, a fronteira agora parece borrada em seus escritos. Na verdade, sua filosofia se alimenta da ciência para mostrar ao mundo uma explicação adequada, que faz de Deus uma hipótese que pode acontecer. Em uma modernidade surpreendente, as meditações contidas em O sonho de D’Alembert (concluído em agosto 1769) reconecta-se com o monismo materialista de Epicuro e Lucrécio. Diderot explora a natureza da matéria, que ele não dissocia do movimento. Ele a concebe de tal modo que a própria vida e o pensamento procedem dali sem qualquer mistério. Certamente, não se deve cair para a ilusão do vitalismo que muitas vezes não passa de uma projeção antropomórfica consistente em emprestar às coisas as propriedades dos seres vivos. Mas nada permite negar à matéria o movimento que a vive e a complexidade que permite explicar em termos materiais as realidades chamadas superiores da alma e do pensamento. O dualismo de corpo e alma é para Diderot uma espécie de fantasmagoria atestando a ignorância dos processos reais e para ele a filosofia do Iluminismo deve libertar-se disso.

Um homem do seu tempo

Em suma, Denis Diderot é completamente um homem de seu tempo, conhecido como Iluminismo. A luz, no singular que marca sua essência genérica, desde Platão e Lucrécio simboliza o conhecimento em oposição à escuridão da ignorância. A ignorância consciente de si mesma é a primeira forma, pois ela ao menos não confundir conhecimento e preconceito. Esse legado socrático é o ponto de partida de um pensamento sem tabu ou prevenção. As Luzes, no plural, referem-se aos várias conhecimento que se constroem afastando as trevas do obscurantismo, que se trada da explicação das leis da natureza ou a reflexão sobre os mecanismos de dominação social e política. Se convém remontar às luzes à luz, isto é, do conhecimento disperso ao conhecimento racional, que ilumina a ação é para fazer com que os homens donos do seus destinos, defatalizem os poderes opressivos e as sacralizações obscurantistas muitas vezes transmitidas pela religião.

É neste sentido que Diderot é considerado “filósofo” por excelência, o que significa, tradicionalmente, amante da sabedoria (philo-sophia). Mas esse nome traz em si um sentido original, que se aproxima de Spinoza. A sabedoria em questão não é apenas redutível à erudição ou à sagacidade moral. Ela é a consciência iluminada pela crítica vigilante real natural e social contra todos os tipos de poder opressivo e obscurantista, em particular religioso ou político. Ela se constrói como uma colocação em perspectiva diferentes conhecimentos em relação às exigências práticas da realização de todos e de cada um. Nisso, Diderot é também militante da emancipação social e sociável.

O projeto de uma enciclopédia

É com esse espírito que se assumiu o projeto de uma enciclopédia do conhecimento humano. Em outubro de 1747, Diderot e D’Alembert são encarregados de realizá-lo. O desafio desta enciclopédia é fazer sair o conhecimento dos círculos da elite aristocrática e dos círculos estreitos dos especialistas para compartilhá-lo com o maior número de pessoas e, finalmente, com todas as pessoas. Em suma, para promover o compartilhamento da cultura e pensamento crítico enquanto se fertiliza novos avanços no conhecimento. O título é explícito: “Dicionário equilibrado das ciências, artes e ofícios”. Esse trabalho coletivo será dirigido e coordenado entre 1751 e 1758 por Diderot e D’Alembert e depois por Diderot sozinho até a conclusão de todos os volumes previstos (artigos e figuras) em 1780. Vinte e oito volumes in folio, incluindo dezessete de textos e onze de figuras, 71.118 artigos: o trabalho é imenso, e se imagina a coragem que devia ter Diderot ele mesmo autor de milhares de artigos, para levá-la a cabo apesar de uma onda de controvérsias obscurantistas, censuras e proibições periódicas, apelos de religiosos à repressão, ou a destruição pelo fogo de volumes publicados e a proibição dos seguintes.

O Prospecto, escrito por Diderot, veio a público em 1750. D’Alembert, por sua vez, escreveu o Discurso Preliminar e inúmeros artigos científicos. A Enciclopédia vai encontrar mil obstáculos, todos superados por Diderot, que declarou ter dedicado 25 anos de sua vida. Primeiro, uma explosão de duras críticas. Os jesuítas, entre outros, passaram ao assalto com o lançamento dos três primeiros volumes entre 1751 e 1753. A partir de 1752, uma decisão do Conselho de Estado proibiu os dois primeiros volumes já sendo distribuídos aos assinantes. O abade de Prades, colaborador da enciclopédia sustenta na Sorbonne em 1751 uma tese teológica, onde contra todo dogmatismo doutrinário ele pede pela religião natural. Esta tese é condenada ao fogo, e o Arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont apela para a repressão contra o seu autor. Diderot se solidariza e publica a Continuação da Apologia do Abade de Prades em Outubro de 1752. Em setembro de 1759, o Papa Clemente XIII condenou a Enciclopédia em um “breve” (isto é, uma sentença lapidar sem preâmbulos ou índice). Uma barragem de calúnias, acusações grosseiras, varrendo Diderot e seus companheiros.

A censura, as ameaças, os desencorajamento dos autores, incluindo o próprio D’Alembert, que abandona a gestão conjunta do empreendimento em 1758, e até mesmo as intervenções do editor Lebreton que se permite suprimir certas partes consideradas ousadas demais: nada por causa da coragem e persistência de Diderot, autor de artigos que se tornaram muito famosos, marcados por sua imensa cultura e verve crítica. Entre outros: Alma, Animal, Arte, Autoridade Política, Belo, Direito Natural, Ecletismo, Enciclopédia, Hobbismo, Irreligoso, Orgasmo, Nascer, Nada, Produção, Spinozista, etc. Primeiro ato de educação coletiva através da publicidade organizada do saber, a Enciclopédia de Diderot apela e anuncia o segundo ato, o de uma educação pública aberta a todos, especialmente aos mais pobres, para quebrar a desigualdade que pretende tipicamente fundar-se na distribuição desigual de dons, mas não passa realmente da diferença entre o privilégio de quem sabe e a dependência daqueles que ignoram. A educação tornar-se-á um dia, a educação popular, segundo o voto de Condorcet, autor das Memórias sobre a Instrução Pública durante a Revolução Francesa.

A transmissor de cultura

Organizador extraordinário da coleta de conhecimentos e de competências na Enciclopédia que ele realiza, contra tudo e contra todos, Diderot não se concebe apenas como uma parte da elite intelectual, mas também, e sobretudo, como transmissor de cultura. Conhecimentos teóricos e criações artísticas, habilidades artesanais e artes liberais, não têm devem ser hierarquizados, segundo ele. Elas fazem parte da cultura da mesma maneira. A Enciclopédia também presta homenagem, especialmente com os volumes dedicados às figuras que registram cuidadosamente as ferramentas de artesãos soba a forma de desenhos precisos acompanhados por comentários explicativos. Se etimologicamente o termo enciclopédia significa círculo fundamentado de conhecimento (enkuklospaideïa) ela não pode ser reduzida a uma justaposição plana. Não se deve enclausurar cada estudioso em seu campo de especialidade. O jogo de referências organizado entre artigos permite construir uma rede dinâmica que cruza e complementa os esclarecimentos. Assim, todo conhecimento é colocado em perspectiva tanto no plano teórico da explicação do real quanto no plano da prática de condução.

De onde uma nova versão da filosofia geral construída dessa vez como rede enciclopédica e reflexiva. O Discurso Preliminar e o Prospecto da Enciclopédia incluem uma variedade de tipos de conhecimento e tentam articular-se dentro de tal espírito. Diderot sabia que a lucidez autêntica não se reduz à erudição. Se ele julga necessário estabelecer o inventário enciclopédico do conhecimento de seu tempo, não é para os fixar a uma tabela, mas para os inscrever em um processo. Trata-se de trazer ainda mais progresso a partir da sinergia criativa de artigos cujas referências permitem acompanhar os itinerários da reflexão dinâmica em função de pesquisas e leituras. Assim, a ordem alfabética adotada por pura conveniência de consulta permite, na verdade, abrir múltiplas pistas de estudo e de aprofundamento. Cercando-se com os melhores cientistas e estudiosos da época, de filósofos e historiadores, Diderot deve lutar contra a censura e as repetidas ameaças contra a realização do projeto, cujo caráter revolucionário em face do poder político e religioso é perfeitamente percebida pelas autoridades da época.

Um autor prolífico

Em novembro de 1753, enquanto trabalhava incansavelmente na Enciclopédia, o filósofo mandou imprimir seus Pensamentos sobre a interpretação da natureza onde ele aprofunda a sua orientação materialista. Em 1754, ele esboça A Religiosa, que ele completará em 1780, e que somente será publicada em um único volume em 1796. Ele não esquece o teatro, para o qual escreveu em 1757, o Filho Natural (apresentada em Paris, em 1771) e depois Um Pai de Família. Em seguida vem, em 1758, o Discurso sobre a poesia dramática. Sua reflexão incansável voltou-se também para a filosofia da arte, particularmente sobre a “composição na pintura.” Ele nutre a Enciclopédia, e em breve dará à luz aos Salões, uma verdadeira invenção da crítica de arte. Em setembro de 1759, Diderot escreveu seu primeiro Salão para a Correspondência literária de Grimm. Os Salões se sucederão ao longo de vários anos: 1761, 1763, 1765, 1767 …

Em 1762, para responder aos ataques infames de Palissot contra os filósofos e estudiosos dedicados à Enciclopédia, Diderot esboça os primeiros capítulos de O Sobrinho de Rameau. Mais importante, apesar de muitas vicissitudes, ele dedicou-se apaixonadamente aos últimos dez volumes da Enciclopédia, que serão finalmente distribuídos em janeiro de 1766. Ele encontra tempo para concluir, em 1769, o Sobrinho de Rameau e em 1772 o Suplemento à viagem de Bougainville. Em 1765, Catarina II da Rússia comprou-lhe sua biblioteca mas deixou-a ao seu dispor vitalício. De junho de 1773 a abril de 1775, ele viajou pela Holanda, em seguida para a Rússia, onde ele agradeceu a Catherine II pelos conselhos políticos, entre outros.

O Paradoxo do Ator, provavelmente escrito entre 1773 e 1777 amplia sua reflexão estética através de uma abordagem do sentido da interpretação teatral, ilustração exemplar do domínio artístico e também do trabalho geral da razão como atividade distanciada. A execução de uma obra exige uma cabeça fria, que inclui o papel e não compartilha absolutamente a emoção que gera. A emoção real nasce de um evento real, gerador de surpresa e reação imediatas: ela é singular e única. Nada a ver com emoção construída e repetida do ator, que trabalha sobre um objeto imaginário. Duas citações: “Como a natureza sem a arte formariam um grande ator, pois nada acontece exatamente no palco como na natureza?” E mais adiante: “Nós sentimos; eles observam, estudam e pintam, Eu lhe diria? Por que não? A sensibilidade não passa da qualidade de um grande gênio. Ela ama a justiça; mas ele exercerá essa virtude sem recolher a doçura. Não é o seu coração, é a sua cabeça que faz tudo.” O Paradoxo do Ator faz assim compreender que o efeito da beleza artística reside no “prazer refletido da imitação”. Não está longe da Poética de Aristóteles, que atribuía a esse prazer um papel psicológico e social de catarse, gratificação dominada das paixões por sua exteriorização expressiva.

Um precursor da Revolução

A prisão após as suas primeiras ousadias desde a censura repetida da Enciclopédia esgotaram Diderot. Forçado à prudência contra a sua vontade, ele renuncia, em 1777, a preparar uma edição completa de suas obras. Ele nem mesmo público o que escreve. O acesso às suas obras se fará postumamente. Algumas das suas obras-primas serão conhecidas na França somente no no século XIX. Por agora, as traduções alemãs os tornam conhecidos em círculos restritos. Por exemplo, seus Ensaios sobre pintura, O Sobrinho de Rameau, traduzidos por Goethe; o essencial de Jacques, o fatalista, traduzido por Schiller; a Entrevista de um pai com seus filhos. Assim Diderot, filósofo quase maldito, junta-se a Spinoza, uma de suas grandes referências no destino dos gênios reprimidos pelo seu tempo.

Denis Diderot desapareceu cinco anos antes da Revolução Francesa, que ele provavelmente teria aprovado. Ele teria visto a implementação de uma emancipação coletiva que sua obra e seu pensamento apelavam por seus votos. Este é particularmente o advento revolucionário de dois princípios fundamentais que ele teria conquistado: a ideia de soberania popular e a emancipação secular da lei comum. Muito rapidamente, Diderot tinha perdido as ilusões relacionadas estranha noção de despotismo esclarecido. Ele observava que o déspota, mesmo esclarecido, continua a ser um déspota, e que as pessoas não saberiam depender indefinidamente das qualidades ou defeitos de um homem. Quanto à necessidade de superar as leis comuns da religião, é certamente transmitida por sua crítica à intolerância religiosa, mas também pela consciência daquilo que, sob o pretexto da religião são os preconceitos de uma época e de uma sociedade que são sacralizados. A religião é facultativa: ela não deve, portanto, tentar impor-se a todos. Quanto à lei, ela é necessária, mas fundada na lei natural, e não nos ditames dos poderosos.

A vida de coragem e busca apaixonada da verdade, da beleza e da justiça, da criação multifacetada em direção à arte como à ciência, uma escrita criativa a serviço do progresso da consciência individual e coletiva: estes são, entre outras as contribuições inestimáveis ​​de Diderot para seu século e para o nosso.

Sobre o autor 


Autor, filósofo

Henri Pena-Ruiz tem um doutorado em filosofia e professor universitário, Mestre de conferência do Institut d’Etudes Politiques de Paris, Professor de filosofia no Liceu Fenelon Khâgne (Paris).


Católicos e maçons. Entrevista com o Padre Ferrer Benimeli, S.J.



Tradução José Filardo

No último dia 31 de Maio, o historiador, professor e querido amigo José Antonio Ferrer Benimeli foi entrevistado pelo jornalista Emiliano Cotelo em Montevidéu. O conteúdo da reportagem é impecável, tanto pela sagacidade das perguntas quanto pelas respostas do Padre Ferrer Benimeli.


Pe. José A. Ferrer Benimelli, S.J.

Convidado pela grande loja do Uruguai, também falou em duas conferências dedicadas à Maçonaria e ao Homem do Iluminismo. Graças ao trabalho de María Lila Ltaif, quem agradecemos, temos a oportunidade de ler a transcrição. Em uma nota anexada à reportagem, o jornalista Emiliano Cotelo lamenta que o Professor Ferrer Benimeli tenha evitado a menção de seu status de padre jesuíta. É compreensível a reclamação do jornalista uruguaio, mas para aqueles que conhecemos Benimeli há anos está claro que não foi fácil sustentar suas pesquisas em torno da Maçonaria. Há alguns meses ao visitá-lo em Zaragoza com o grão mestre do grande Priorado de Hispânia, ouviu, pudemos ouvir, entre outros casos lamentáveis, as agressões sofridas e o incêndio “acidental” de sua biblioteca e arquivos, em épocas em que as coisas não eram tão fáceis na Espanha.

Com o devido agradecimento ao jornalista Cotelo, fazemos eco da presente nota e parabenizamos a todos que tornaram isso possível.


EMILIANO COTELO:

A relação entre a Igreja Católica e a Maçonaria sempre esteve carregada de tensão e até mesmo certo mistério. Durante séculos, os diferentes papas católicos consideraram os maçons negativamente. Chegaram, até mesmo, a tratá-los como criminosos. Esta oposição radical parece ter sido moderada um pouco em nosso tempo. Mas, que tipo de relacionamento existe, se é que existe algum, entre estas duas instituições tão arraigadas no mundo e especialmente aqui no Uruguai? Pode-se ser católico e maçom? Existem sacerdotes maçons?

Esta manhã, recebemos em “Em perspectiva” o José Antonio Ferrer Benimeli, um especialista de longa experiência nas questões da Igreja e Maçonaria que esta semana está visitando nosso país para proferir duas palestras, um hoje e outra na noite de quinta-feira no Ateneo de Montevidéu.

Ferrer Benimeli tem 78 anos de idade, nasceu em 1934 em Huesca, Espanha. É licenciado em filosofia e letras com especialização em história pela Universidade de Zaragoza e desde o final dos anos 60 é professor nessa universidade. Ali, ele também dirige o Centro de Estudos Históricos da Maçonaria Espanhola. (*) De acordo com informações disponíveis na internet, você escreveu 47 livros relacionados com a Maçonaria, mas também colaborou em outros 200 livros e tem mais de 400 artigos publicados. Estes números estão corretos?

JOSÉ ANTONIO FERRER BENIMELI:

Eu acredito que eles ficam aquém.

EC – Por que você adotou essa especialização, por que se concentrou desta forma na Maçonaria? O que é o centro de estudos históricos da Maçonaria espanhola?

JAFB – Começando pela segunda parte, o Centro de Estudos Históricos da Maçonaria Espanhola é uma instituição da Universidade à qual pertencem 120 professores universitários e alguns professores do ensino secundário ou de centros de pesquisa, tais como o Conselho Superior de Pesquisas Científicas, e foi formado há 25 anos com o objetivo de estudar uma associação de que todos falavam e que sobre a qual tão pouco se sabia. E estudá-lo de um ponto de vista histórico, não de um ponto de vista polêmico ou apologético, que é o que mais se tem insistido ao longo da história. Se analisarmos a bibliografia, em especial a última a ser publicada, que consiste de 20.000 títulos, veremos que há uma parte que é totalmente apologética e outra que é totalmente antimaçônica, e o que nos interessava era a perspectiva universitária, tentar levar-nos mais perto da verdade desta instituição que tem sido tão distorcida, tão controversa e que continua a ser tão desconhecido e continua produzindo tanta curiosidade em torno dela.

EC – Você em particular, aparentemente, dedicou praticamente a sua vida a esta questão.

JAFB – Toda a vida não, mas 50 anos dela sim. Quando comecei a escrever minha tese de doutorado sobre esta questão – e esta compreenderia a primeira pergunta de por que eu dediquei mais ou menos, não de forma monográfica, visto que tenha havido outras linhas de investigação durante minha vida -, em nossa universidade estava-se estudando os políticos aragoneses do século XVIII e em especial eu me perguntei: “E porque não abordar a história do Conde de Landa?”, o primeiro-ministro de Carlos III, de quem se dizia ter sido Maçom e fundado a Maçonaria na Espanha. E começamos, mas dentro de alguns meses cheguei à conclusão de que ele nem havia fundado a Maçonaria, nem tinha sido Maçom, com o que me encontrei um pouco desarvorado em minha tese de doutorado e tive que encontrar uma alternativa, e como já estava envolvido com o assunto, comecei a trabalhar sobretudo no arquivo secreto do Vaticano e em outros 120 arquivos da Europa o que eram as motivações, as primeiras condenações Pontifícias desta instituição. Então fui até o século XVIII, quando se esgota e passa ao século XIX e do século XIX passa ao XX e do XX ao XXI e aqui estou, nesta armadilha agarrado a esta pesquisa.

EC – aqui no Uruguai, no final do século XIX, mas especialmente no início do século XX, ocorreu um processo de separação entre a Igreja Católica e o Estado. Um processo que incluiu medidas tais como o casamento civil obrigatório, a exclusão de toda alusão religiosos nos atos de posse das autoridades ou, talvez o mais importante, o estabelecimento do secularismo no ensino público. De acordo com o escritor Fernando Amado, que publicou dois livros de sucesso sobre a Maçonaria no Uruguai recentemente, este processo de separação entre Igreja e Estado foi a origem dos confrontos mais pesados ocorridos entre a Igreja e a Maçonaria em nosso país. De todos os modos no mundo o confronto é muito anterior a essas datas, não?

JAFB – Remonta ao ano de 1738.

EC – Muito próximo do nascimento da Maçonaria.

JAFB – Sim, que ocorreu em 1717. Este foi o ponto de partida do estudo da minha tese de doutorado que abordou esta questão.

EC – Quando você se refere a 1738…

JAFB – É a bula de Clemente XII, a primeira condenação papal.

EC – Estabelece “a excomunhão de todos os católicos que pertenciam ou pretendiam ingressar na sociedade secreta conhecida como Maçonaria”. Assim se lê textualmente.

JAFB – A bula não diz isso; isto é posterior ou é uma interpretação histórica jornalística dela. O contexto é um pouco mais complexo. Já em 1735, as autoridades protestantes em Haia e Amsterdam proíbem as reuniões de maçons. Em 1737 fazem o mesmo as autoridades protestantes de Berna e de

Genebra, ou o chefe da polícia de Paris, o Cardeal […], que era o primeiro-ministro de Estado. Mas, poderíamos continuar ano após ano, 1738 as cidades hanseáticas, 1742 a Imperatriz Maria Teresa da Áustria, 1748 o […] de Constantinopla, o rei Carlos III de Nápoles em 51, seu irmão Fernando em Espanha… Poderíamos chegar a 1798 com o Czar Paulo II. Eles não proíbem a instituição, mas as reuniões de maçons, porque naquela época os governos eram absolutistas e uma instituição – e este era o problema fundamental – que foi criada à margem da autoridade de acordo com a legislação da época, que era de direito romano, incorria imediatamente em tornar-se suspeita de ir contra a ordem pública. Porque então o monarca, o rei tinha os três poderes, era o legislador, era praticamente tudo; até mesmo impunha a religião de seus súditos […], os reis Luteranos impunham o Luteranismo, Os anglicanos o anglicanismo, os católicos o catolicismo.

Esta associação, a Maçonaria nasce em um contexto imediatamente posterior às guerras de religião. Em nome de deus se havia matado tanta gente e isso podemos compreender hoje talvez melhor com a experiência fundamentalista de muitos países, e nasce com uma ideia de tolerância, de busca, de fraternidade, de liberdade entre as pessoas que pensam de forma diferente, não só no campo político, mas também no campo religioso e no domínio cultural. Esta foi a origem e é isso que lhes cria complicações, porque foi criada à margem da autoridade.

CC – Tenho aqui expressões do Papa Pio VIII, por volta do ano de 1820: “São associações secretas de homens facciosos, inimigos declarados de Deus e dos príncipes, que empregam todos os seus esforços para devastar a Igreja, subverter os Estados, perturbar todo o universo e, que quebrando o freio da verdadeira fé, abrem o caminho para todos os crimes”.

JAFB – Sim, há muitas expressões, mas já estamos falando já do século XIX. Há uma lacuna entre o século XVIII e século XIX; no século XIX depois da Revolução Francesa, a Maçonaria será falsamente identificada com as sociedades que lutam e conspiram contra os poderes civis legitimamente estabelecidos. E especificamente em Roma o poder civil legalmente estabelecido era o rei de Roma, era o Papa, que ao mesmo tempo era o chefe da Igreja. Por isso, hoje, existe uma vinculação, da mesma forma que no século XVIII, o Papa começa sua proibição seguindo o exemplo de outros governos “eu também proíbo as reuniões de maçons”. Após a Revolução Francesa já não se proíbem as reuniões de maçons, mas proíbe-se a instituição, que é identificada com as ideias do liberalismo, com as ideias de liberdade, com as ideias de democracia, constitucionalismo, que se opõem ao absolutismo que permanece na Europa, por ser revolucionária. Na Europa absolutista do Congresso de Viena, o czar da Rússia, o imperador da Áustria – Hungria, os principados da Itália, o rei de Espanha, ou seja, os países absolutistas, diante daqueles que já descobriram a liberdade, como é o caso da França, e como vai ser muito em breve o caso de todas as repúblicas da América Latina.

E o maçom defende a liberdade, a liberdade individual, então é muito fácil, neste caso, dar o passo e assim foi, a Maçonaria não só defende a liberdade, mas ela também defende a liberdade dos povos e, por isso liderará os movimentos não só de insurgência mas também de independência dos povos ou estará muito identificada. A questão aqui é saber se a Maçonaria se introduz antes ou depois da independência. Quando são constituídas as grandes lojas, 1862, 1856 aqui no Uruguai. Eu acho que a resposta está clara, embora tivesse alguns caracteres que puderam colaborar antes nesta política.

EC – A partir de sua exposição, está clara que é o que a Igreja Católica rejeitava na Maçonaria. Mas, como era este confronto visto do outro lado? O que rejeitava a Maçonaria na Igreja Católica, de onde vinha o confronto do lado dos Maçons? Na verdade, efetivamente.

JAFB – Em suas origens, incluindo hoje dia na maior principal das maçonarias… Porque estamos falando sobre a Maçonaria no singular e precisaríamos falar sobre maçonarias no plural, porque a Maçonaria nos Estados Unidos não é a mesma que na Grã-Bretanha, ou que a Maçonaria na França, na Itália ou na Espanha, nem na Espanha é o mesmo que a maçonaria do século XIX e a maçonaria do século XX. Então esta é uma nuance que deve ser salientada.

Nas Constituições da Maçonaria, no artigo 2º exige-se para ser maçom crer em Deus e na imortalidade da alma e se insiste em que cada maçom deve ser fiel à sua religião. Que na Maçonaria em nas lojas se admitidos homens de diferentes religiões não significa sincretismo, nem qualquer coisa contrária à própria religião. Fazendo uma transposição terminológica, em alguns lugares chama-se a isso ecumenismo. Mas, no século XVIII isso não se podia entender, porque os católicos não podiam sequer reunir-se com não católicos, estando sujeitos à pena de excomunhão. E por que os maçons são condenados com excomunhão? Porque na bula In Eminenti, seguindo o exemplo de outros governos, motivação política, mas como os maçons se reúnem ou permitem que existam não católicos em suas lojas, então estão sujeitos à pena de excomunhão porque os católicos não poderiam atender com não católicos.

EC – Mas a maçonaria ou algumas lojas maçônicas nunca fizeram guerra contra a Igreja Católica?

JAFB – Sim, claro. Porque isso eu digo que é preciso ir deslindando o panorama. NO século XVIII, não há problema, é mais, publiquei 5.000 sacerdotes católicos que pertenceram à Maçonaria no século XVIII, mesmo depois das sentenças Pontifícias, porque de acordo com sua própria consciência ali não havia coisa alguma que atentasse.

EC – No Uruguai, em particular, é dado como um fato que o padre Dámaso Antonio Larrañaga, associado íntimo do general José Artigas, um sacerdote, era maçom.

JAFB – Sim, mas estamos já no século XIX e no século XIX há uma série de maçonarias que ao invés de se envolver como as mais tradicionais e herdeiras da fundação inglesa de 1717, que se fundamentam, sobretudo no ritual, no espiritual, em uma espiritualidade maçônica ou uma espiritualidade que inclui os ateus, os não crentes em Deus, conforme mencionado em várias publicações ultimamente. E existem outras maçonarias no século XIX, especialmente nos países da Europa, na França, na Espanha, na Itália, que se envolvem mais nos problemas sócio políticos e, então sim, que há aí uma união íntima com estas políticas secularistas ou que dão maior importância ao que acontece com a própria formação, porque a Maçonaria de fato é uma escola de formação do homem. Mas, há outros que dizem “não, mas saiamos de nosso próprio mundo pessoal, envolvamo-nos no mundo ao nosso redor”. E isso eu experimentei alguns anos atrás em uma área muito pobre do Brasil onde havia uma loja secular e me disseram: “Aqui houve uma divisão porque um grupo de maçons não entendia que nos reuníssemos vestidos de preto, com luvas, com todo o ritual, e que ao nosso redor existissem favelas”. Então, houve um grupo que se mudou para uma favela e aí construiu sua própria loja com tijolos, com piso de terra, com umas cadeiras onde que cada uma era diferente da outra, criaram uma clínica, uma escola e se dedicaram a buscar água nem sequer havia água nessas favelas. Duas maneiras de conceber a Maçonaria: como exclusivamente a formação em si ou como um compromisso social com o ambiente. Então, algumas maçonarias do século XIX, do século XX e incluindo os dias atuais estão mais envolvidas com estes problemas sociais e políticos, e por não isso é surpreendente que elas defendam a separação entre Igreja e estado no século XIX. Mas logo em seguida, no século XX acontece o Concílio Vaticano II que defende a separação entre a Igreja e o Estado. Assim que, às vezes por adiantar-se ao seu tempo sofrem-se certos castigos, pelo pioneirismo.

EC – E isso foi o que você entende ter acontecido com a Maçonaria? 

JAFB – Em algumas maçonarias foi o que aconteceu.

EC – Hoje como é a relação entre a Maçonaria e a Igreja Católica? A Igreja continua a considerar a Maçonaria uma seita?

JAFB – tudo depende do que você entende por Igreja. Sim, existem documentos que ainda estão falando de seita; do ponto de vista da história eu acho que é não certa essa expressão, porque o que é uma seita? Seita é uma religião falsa do ponto de vista da Igreja Católica, e a partir do momento em que a Maçonaria não é uma religião, dificilmente pode ser uma seita. O ponto de partida já pode apresentar dúvidas, ou, inclusive, mal entendidos.

EC – Como se define Maçonaria? Tenho aqui um folheto da própria instituição e ele diz: “A Maçonaria é uma associação universal, científica, filosófica e progressista que reúne todos os seres humanos que se sentem Unidos pelo vínculo da solidariedade, resultantes dos princípios de amor à humanidade e à verdade.” Nela se estimula e se praticam: 1) o estudo da moral, da ciência e das artes para melhorar a condição social do homem por todos os meios lícitos e especialmente pela educação, o trabalho e a abnegação; (2) a tolerância exercida para tornar mais sólidos os laços de União entre os semelhantes, extinção de antagonismos de nacionalidade, de opinião, de raças e interesses parciais; (3) o livre pensar, sem depreciar qualquer ideia, na certeza de que é a razão humana o que rege os destinos do mundo. A Maçonaria reconhece a existência de um princípio criador superior, ideal e único, cuja interpretação é pessoal e absolutamente livre para cada homem. A ideia de uma origem única e comum de todos os seres humano é o fundamento em que se baseiam os conceitos sociais de igualdade e fraternidade, e, por conseguinte, o direito dos povos a serem livres e governados democraticamente.”

JAFB – Mais do que uma definição, é uma declaração de princípios. As definições têm de ser curtas. É uma declaração de princípios, e neste caso se encaixa em muitos pontos no que dizem outras maçonarias.

EC – E, assim, quando a define como instituição aparece expressamente a precisão que você formulava a poucos momentos: a Maçonaria não é uma religião.

JAFB – Exatamente. Em cada país, não é que exista uma Maçonaria, mas que podem existir, inclusive, várias maçonarias. Por exemplo, na França, ainda hoje existem até 15 diferentes maçonarias, como na Espanha, então cada maçonaria pode ter uma orientação mais particular ou mais específica. Esta me pareceu ser a que reflete a maçonaria daqui, do Uruguai, a atual.

Então é correto, e como você verá, ali não há nenhum confronto com a Igreja, embora existam alguns princípios que podem ser interpretados pela Igreja de forma diferente. Especialmente quando se fala de livre pensar, que tem toda uma trajetória e que é necessário saber compreender e situar em cada momento da história e em cada país. Mas chegando a qual é a situação hoje, a Maçonaria durante muitos anos foi proibida e não apenas proibida, mas condenada com a pena de excomunhão pela Igreja Católica. Isto se resumia no primeiro Código de Direito Canônico de 1917. Este Código de Direito Canônico recolhia toda a legislação anterior que tinha sido dada pelos diferentes papas ao longo da história e especialmente os anteriores à data de 1917. Estes papas são Pio Nono e Leão XIII. Apenas estes dois papas, que são aqueles envolvidos na luta do Vaticano contra os patriotas italianos que estavam tentando unificar a península italiana e que são os que mais se opõem a isso, porque o Papa Pio Nono estava acima de tudo, convencido de que se ele não tivesse um poder temporal tampouco poderia ter um poder espiritual. Daí a defesa dos Estados Pontifícios contra os exércitos de Victor Emmanuel e de Garibaldi pelo Sul, que estavam tentando conquistar e unificar a Itália. Aqui já temos outro problema a acrescentar, que é o problema político da Unificação. Portanto, não é de se estranhar que Pío Nono e Leão XIII, sozinhos, que são os protagonistas deste problema, emitiram 2.200 documentos condenando a Maçonaria, por identificá-la com os carbonários, com as sociedades patrióticas, com todos aqueles que lutavam pela unificação italiana. E não é de se estranhar que o código promulgado imediatamente após recolha toda essa situação. Que nos diz o Cânone 2335? Que os que dão seu nome a associações que conspiram contra a Igreja e os poderes civis legitimamente estabelecidos estarão sujeitos à pena de excomunhão ipso facto, cuja pena é reservada ao Sumo Pontífice, exceto em caso de morte. Aqui eles estão falando sobre a Maçonaria que se identifica com sociedades que conspiram contra a Igreja e os poderes civis legitimamente estabelecidos. O Papa era o poder civil legalmente estabelecido e era a Igreja, de acordo com esta legislação. E, por conseguinte, estamos identificando uma instituição com um problema sócio-político ou político-militar italiano do momento.

EC – Mas muito mais próximo no tempo, algumas poucas décadas atrás, eu ouvi católicos falar, talvez católicos com uma posição ideológica à direita, da conspiração judaico-maçônica, por exemplo.

JAFB – Judaico-Maçônica-comunista.

EC – em alguns casos, a conspiração judaico-Maçônica-comunista. Estou falando do século XX.

JAFB – Sim, isso eu posso explicar muito bem porque eu tenho um livro chamado “O contubérnio judaico-Maçônico-comunista”. É um reflexo de uma mentalidade de extrema-direita que precisa culpar alguém para ser capaz de salvar-se.

Gostaria de fechar o tópico da situação jurídica atual. O Cânone 2335 desaparece com a promulgação do novo Código de Direito Canônico, que acontece em 1982, e o Cânone 2335 vai ser substituído pelo 1374, que diz: “Os que dão seu nome a associações que conspiram contra a Igreja estarão sujeitos a uma pena justa e aqueles que as dirigem à pena de interdito”. Ou seja, desapareceram as palavras “Maçonaria” e “excomunhão” e a expressão “aqueles que conspiram contra os poderes civis legitimamente estabelecidos”. Ou seja, o que era uma situação concreta do século XIX, desapareceu no século XX.

EC – E como se traduz essa nova regra em termos práticos?

JAFB – Se existem maçonarias que conspiram contra a Igreja, elas estão sujeitas a esta pena, mas se existem maçonarias que não estão sujeitas dificilmente podem cair.

EC – Mas, por exemplo, no livro de Fernando Amado “Em penumbras. A Maçonaria uruguaia 1973-2008”, um livro do ano de 2008…

JAFB – É preciso acrescentar a reação que ocorreu então e a nota de imprensa que sai no L’Osservatore Romano logo em seguida. Suponho que ele se refere a isso.

EC – Não, refiro-me a que aparecem declarações de Monsenhor Pablo Galimberti, bispo de Salto, que entende, a respeito da possibilidade de ser católico e Maçom: “Não é possível, assim como a Maçonaria, hoje se apresenta, devo dizer que a Igreja Católica já teve seu pronunciamento com relação a que são concepções filosóficas diversas e antagônicas”. E quando perguntado se ele daria comunhão a um maçom, respondeu: “Não, não lhe daria a comunhão. Porque eu creio que ele mesmo se colocou em uma zona na qual está afirmando sua participação em uma associação cujos princípios filosóficos que chegam mais perto simbolicamente são um Supremo Arquiteto, mas a Igreja não sustenta um Supremo Arquiteto como uma colher com um olho”.

JAFB – É uma interpretação que eu respeito como eu espero ou desejaria que ele respeitasse outras interpretações. Eu poderia citar a você muitas outras de outros Bispos, inclusive cardeais que não são tão radicais nem coincidem, mas dirá que eles estão em outra situação muito diferente.

EC – Você diz que o dentro da Igreja Católica a norma vigente promulgada pelo Vaticano é interpretada de formas diferentes?

JAFB – Foi sempre esse o caso, não? De toda forma, a norma jurídica está muito clara, a norma jurídica não fala de maçonaria nem fala de filosofia da maçonaria. E nesta interpretação que você acaba de ler, tudo se baseia em uma interpretação filosófica, mas de que Maçonaria ela fala? E de que filosofia, se a Maçonaria não tem filosofia?

EC – portanto, se chegamos ao ano 2012, em que nos encontramos, como você define o relacionamento entre a Igreja e a Maçonaria? Podemos falar de “relações”?

JAFB – De relações e de igrejas, porque quem é a Igreja? Em cada diocese, a Igreja é o bispo, não? No Brasil existem 360 bispos. Não sei se são necessárias mais explicações. Eu tenho experiências do Brasil de estar fazendo conferências em diferentes cidades; chegar a uma cidade e o bispo dizer que ninguém iria me ouvir porque não, e no dia seguinte, o bispo da diocese seguinte me chamar para que falasse aos padres e freiras de sua diocese no seu próprio palácio episcopal. Felizmente, a Igreja tem uma variedade que é o que a enriquece.

EC – Mas, institucionalmente, entre a Igreja Católica e a Maçonaria existem vínculos?

JAFB – Tudo depende do que se considere como vínculo. A Maçonaria não é uma religião; e não sendo uma religião não tem necessidade de ter uma ligação com uma religião concreta. Os vínculos já estão mais pessoais, se um maçom tem problemas de consciência e é católico, o lógico é que você vá até o seu pároco, seu confessor ou seu bispo e tente esclarecer a questão, porque essa é a norma. O que acontece – e quero dizer isso para evitar desde já as interpretações falsas – é que, ao promulgar este Código de Direito Canônico, no mesmo dia o então Cardeal Ratzinger fez um comunicado de imprensa no L’Osservatore Romano, dizendo que embora o novo Código de Direito Canônico não mencionasse a Maçonaria, a atitude da igreja permanecia inalterada sobre esta instituição e, por conseguinte, todos os maçons estavam em um Estado de pecado mortal e eles não podiam acessar os sacramentos.

EC – Como se entende isso?

JAFB – É difícil de entender. Eu poderia falar a você a partir do ponto de vista histórico, não do ponto de vista ideológico. Há um ponto de partida que eu acredito ser falso. Em muitas destas interpretações eclesiásticas identifica-se a Maçonaria com uma religião, e ela não é. Isso já vem de uma declaração dos Bispos alemães dos anos 80, que é a que então se tentou introduzir. Eu lhe vou dar um dado: na véspera da promulgação do Código de Direito Canônico, na Pontifícia Comissão de Direito Canônico, que era composta de mais de 50 entre cardeais, arcebispos e peritos, discutiu-se se se manteria a excomunhão para os maçons, este tópico foi discutido. Um tema que levou 20 anos, porque o Código de Direito Canônico levou 20 anos e pode lhe dizer que eu acompanhei passo a passo porque mesmo em algum momento tive que participar em alguma consulta.

O que aconteceu nesta votação? Que os que pediam que se mantivesse a excomunhão perderam a votação em uma proporção de 30 e tantos contra 15 ou 16. Por conseguinte, o novo Código de Direito Canônico não se refere à Maçonaria ou à excomunhão. Agora, se você me diz quem são aqueles que votaram a favor da manutenção da excomunhão, eu poderia dizer que entre eles estava o Cardeal Ratzinger, que é logo aquele que emite a nota no dia seguinte. E é a nota que permanece até hoje. Mas desde então até hoje não se voltou a discutir a questão, exceto em relação às diferentes conferências episcopais de Bispos dos países mais fortemente envolvidos com o tema da Maçonaria, que podiam ser os Estados Unidos, Brasil, os países escandinavos, onde o cardeal Sepe, que é o predecessor de Ratzinger na Congregação para a doutrina da fé, tinha sido autorizado em 1972 que os católicos pudessem ser maçons daquelas maçonarias que não conspirassem contra a Igreja Católica.

Então não é verdade que a atitude da Igreja seja inalterada; houve mudanças, se mantém inalterado o decreto do Cardeal Sepe e a norma que existia imediatamente ou a norma que existia no século XIX. É complexo, especialmente quando você vê do ponto de vista da história e da análise de documentos e como esses documentos são criados porque muitas vezes o documento é frio, mas quando você olha nos arquivos como se chegou a esse documento e, então você pode ver que a coisa não é tão simples.

EC – O Dr. José Antonio Ferrer Benimeli encontra-se em Montevidéu, convidado pela Grande Loja da Maçonaria onde fará duas conferências. Uma delas é hoje às 19 no Ateneo de Montevideo sobre “O maçom, homem do Iluminismo”, e a outra será na quinta-feira no mesmo horário e lugar, mas sobre este assunto que estamos falando nesta manhã, “A Igreja Católica e a Maçonaria”.

Transcrição: María Lila Ltaif

(*) Observação de Emiliano Cotelo:

José Antonio Ferrer Benimeli é também um padre jesuíta. No entanto, hoje ele solicitou que esse fato não fosse mencionado. Ele me pediu isso minutos antes da entrevista, quando entrou no estúdio. Amigável, mas terminantemente, ele alegou que estava em Montevidéu como um historiador e especialista em assuntos da Maçonaria e não como um membro da Companhia de Jesus. Expliquei-lhe que era quase impossível contornar esse dado que confere um valor agregado à sua análise sobre a Maçonaria e Igreja Católica, que está incluído em todas as suas biografias disponíveis on-line e, além disso, tinham sido citados em promoções da história no rádio. Por esse motivo, argumentei, o lógico seria indicaria isso – ainda que brevemente – na apresentação inicial do convidado, após o que, naturalmente, ele poderia fazer os esclarecimentos que entendesse pertinentes. Ferrer Benimelli permaneceu na sua recusa e acrescentou que uma situação assim seria ser muito desconfortável para ele. Como a altura da conversa o intervalo comercial tinha terminado e não havia nenhuma margem para produzir um conteúdo jornalístico alternativo, escolhi, contrariado aceitar a restrição. Agora, eu deixo o registro desses fatos que eu acredito que essa condição, feita no último minuto, alterou significativamente a entrevista. Na verdade, privou muitos ouvintes de uma informação pertinente para fornecer o contexto para as afirmações do especialista e obrigou-me a renunciar a duas ou três questões que se impunham como elementares.

Publicado originalmente no blogue “Temas de Masonería