sexta-feira, 14 de agosto de 2015


 O SEGREDO DO ARCO REAL

Autor: João Anatalino.

A origem da lenda

No rito do Arco Real os graus do Capítulo e extensivamente, nos graus filosóficos do REAA, uma das alegorias mais peculiares é a chamada Palavra Perdida. Essa palavra, que segundo a tradição, aparecia dentro de um triângulo emoldurado por um olho onisciente, era um símbolo de poder, que encerrava o mistério da criação. Para os israelitas que escreveram a Bíblia e detinham o segredo da sua verdadeira interpretação, essa palavra era o nome verdadeiro de Deus, que muitos poucos conheciam e menos ainda eram os que sabiam pronunciá-lo corretamente. Esse nome conferia um extraordinário poder ao seu detentor, e quem detivesse esse conhecimento seria capaz de construir civilizações, mas também poderiam desafiar o próprio Deus.

A maçonaria do Arco Real trabalha esse tema através de uma interessante lenda envolvendo os antigos patriarcas antediluvianos. Essa lenda diz que Jubal, Jabel e Tubal – Cain, haviam inscrito em duas colunas, uma de pedra, outra de tijolos queimados, todas as antigas ciências que os Irmãos da Fraternidade da Luz haviam ensinado aos primeiros homens. Essa ciência foi perdida por ocasião do grande dilúvio que afogou a antiga civilização, mas foi recuperada por um grande sábio egípcio chamado Thot, o qual a ensinou aos sacerdotes daquele país, razão pela qual os egípcios eram tão sábios nesses conhecimentos arcanos. [1]

A Fraternidade da Luz aqui referida é a Confraria dos anjos rebeldes, formada pela rebelião de Lúcifer, o anjo da Luz que se rebelou contra o Criador e foi expulso do céu com um grande contingente de seguidores, sendo arrojados na terra para cumprir uma pena de exílio. Seriam esses anjos rebeldes que teriam desencaminhado o homem, revelando-lhe o conhecimento do bem e do mal, referido na Bíblia.[2]

Na verdade, o conhecimento do bem e do mal, conforme referido no livro sagrado, seria de fato, as ciências que proporcionaram ao homem o desenvolvimento da sua civilização. Por isso, em todas as tradições dos povos antigos, existem lendas a esse respeito, atribuindo aos deuses (ou seres extraterrestres), a iniciação do homem na ciências que fazem uma civilização. No Egito essa iniciação era atribuída a Osíris, na Pérsia a Mitra, na Índia a Indra, na Mesopotâmea a Enlil, na Grécia a Hermes.[3]

A utilização maçônica da lenda

Jubal, Jabel e Tubal – Cain eram descendentes de Cain, o amaldiçoado filho de Adão. Eles detinham esses conhecimentos, por isso diz-se que eles foram rebeldes contra o Grande Arquiteto do Universo, já que os repassaram aos homens, semeando também entre eles a rebelião.[4]

Os homens, tendo aprendido essa ciência, contra a vontade do Grande Arquiteto do Universo se tornaram maus e arrogantes. Por isso Ele fez cair o pavoroso dilúvio que cobriu de águas toda a face da terra por mais de cento e cinquenta dias. [5]

A rebelião desses três homens, que representavam as artes, a técnica e a ciência daquele tempo, ficou conhecida nessa tradição como a rebelião dos companheiros, pois Jabel era perito nas artes da agricultura e pastoreio, Jubal era hábil em música e nas artes mais refinadas do espírito, e Tubal – Cain um competente artífice em obras de ferro e bronze.[6]

Simbolicamente, essa lenda reflete uma interpretação cabalística da Bíblia, feita por alguns autores, que veem nesse episódio um reflexo do conflito ocorrido nos céus entre o Mestre do Conhecimento (Aquele que pensa o universo, o seu Grande Arquiteto) e aqueles que o aplicam (os anjos construtores, os Demiurgos), que eram aqueles Anjos da Fraternidade da Luz, a quem o Grande Arquiteto do Universo constituiu mestres universais, para construírem o mundo que Ele havia concebido. Essa concepção é fundamentalmente maçônica, mas sua inspiração vem do Zhoar, o Livro do Esplendor, que introduz a Cabala judaica.

A saga de Noé, com sua arca, e depois com o trabalho de reconstrução da humanidade destruída pelo dilúvio, é vista neste simbolismo como uma espécie de reconstrução do edifício universal, obra que o Grande Arquiteto do Universo confiou á família do piedoso patriarca. 

Essa lenda explica também o episodio da Torre de Babel, onde o Grande Arquiteto do Universo precisou confundir as línguas faladas pelos homens, pois segundo essa lenda, Ninrode, o “poderoso caçador perante o Eterno”, rei dos acadianos, havia encontrado as colunas gravadas e estaria tentando aplicar os conhecimentos nelas contido para construir edifícios que tinham por meta pesquisar os segredos do céu, desafiando assim o poder do Grande Arquiteto do Universo.[7] 
Por isso é que antigos maçons, antes que a Arte Real se tornasse uma instituição identificada por um nome, costumavam dizer sempre que a maçonaria havia sido aprendida diretamente dessas colunas erguidas pelos três descendentes de Cain, sendo a torre de Babel uma aplicação prática dessa arte.
Todavia, com a confusão das línguas, a antiga sabedoria se perdeu e deixou de ser comunicada à humanidade em geral. Apenas alguns homens de mérito, a critério do Grande Arquiteto do Universo, podiam deter esse conhecimento. Era como se fosse uma palavra que havia sido perdida, por isso cunhou-se a Lenda da Palavra Perdida. Esse tema continua a ser desenvolvido na Lenda de Enoque, que é o tema de um dos capítulos do Arco Real e também do REAA. [8]

A filosofia da lenda

Aquele a quem a Palavra Perdida era comunicada assumia o compromisso de trans-miti-la somente a outra pessoa cujo mérito fosse reconhecido pelo Grande Arquiteto do Universo. Porque essa era a sabedoria com a qual o mundo fora construído e todas as coisas podiam ser feitas. Por isso os homens perversos, e aqueles que não a conseguiam obter pelo mérito de suas obras intentavam obtê-la à força, destruindo povos e nações e cometendo toda sorte de crimes e violência para obter esse poder.[9]

E esse é (segundo a filosofia do grau), o motivo de todas as guerras e conflitos que existem no mundo, porque quem não consegue obter por sua própria inteligência e trabalho as coisas que deseja ter, procura tomar de quem tem, usando a força ou a prática ardilosa, que geralmente degenera em crime.

Assim, a boa maçonaria foi desenvolvida justamente para ensinar aos homens puros e de bons costumes essa antiga sabedoria que nos capacita a obtê-las com verdadeiro mérito. 

Daí a razão de a maçonaria se inspirar nos princípios e na prática dos antigos israelitas. Porque, segundo a lenda, a Israel bíblica foi a herdeira desses conhecimentos contidos nas colunas de bronze, as quais, segundo informa a Lenda de Enoque, essa sabedoria teria sido transmitida a Abraão e depois a Moisés, para que estes pudessem desenvolver a “maquete humana” do grande edifício cósmico que o Grande Arquiteto do Universo se propôs a construir. [10]

Mais tarde essa sabedoria, simbolizado pelo Nome Sagrado e chamado de Palavra Perdida, teria sido ensinada a Salomão e Adonhiram (o mestre Hiram do REAA), para que estes inscrevessem na estrutura de um edifício esses conhecimentos arcanos para que estes fossem registrados para a posteridade. Resulta daí o simbolismo do Templo de Salomão, que na maçonaria passou a ser o seu principal ícone. 

Esse é o simbolismo desenvolvido pelo ensinamento dado nos Capítulos do Arco Real, cujo paralelo também se encontra nos graus filosóficos do Rito Escocês. O que aí se propõe é que os maçons que frequentarem esses capítulos encontrem a “Palavra Perdida”, pois esta está oculta em seus corações, já que o próprio homem é um templo vivo do Criador. E essa palavra é a sabedoria que ensina os homens a construir povos e nações, sustentados por colunas semelhantes á que suportavam o Templo de Salomão. Estabilidade e Força, refletidos na estrutura das colunas Boaz e Jakin. As grandes realizações maçônicas do passado tiveram nesse simbolismo a sua maior inspiração. Talvez fosse o momento de os maçons de hoje começarem a procurar novamente essa Palavra, pois ao que parece, ela atualmente ela já se perdeu ha algum tempo e precisa ser reencontrada.

[1] O deus egípcio Thot também era identificado com o Osíris, que antes de sua morte tinha sido um grande rei, a quem o Egito devia os princípios de sua civilização. Na Grécia esse personagem ficou conhecido como Hermes Trismegistus, o deus das artes e das ciências, que teria nascido anteriormente por três vezes no Egito, legando àquele povo, em cada encarnação, um ciclo de civilização. Segundo essa tradição Pitágoras, o grande matemático e filósofo grego, também teria aprendido a sua ciência diretamente dessa fonte.
[2] Gênesis, 3:1. Esse tema foi desenvolvido por John Milton em seu poema clássico “O Paraíso Perdido”.
[3] Veja-se, a propósito, a s curiosas teses de Zecarias Sitchin, em seu livro “Décimo Segundo Planeta”, na qual ele interpreta os mitos sumerianos da criação (que inspiraram os cronistas bíblicos) como resultados de uma expedição realizada por seres extraterrestes.

[4] Simbolicamente, essa lenda está conectada ao Drama de Hiram, representado na elevação do maçom ao grau de Mestre, no Rito Escocês. Ela simboliza a “traição dos companheiros”, que se voltam contra seu Mestre, exigindo dele um reconhecimento por um mérito não conquistado. Ressalte-se que o nome de Tubal – Cain foi adotado como senha para o grau de companheiro maçom justamente pelo fato de ser ele o “patrono” dos companheiros, ou seja, um prático que não detinha o grau de Mestre e quis, á força, obter o segredo do mestrado, (a palavra de passe) que lhe daria esse título.
[5] Gênesis, 6;9
[6] Gênesis, 4:17
[7] Ninrode era descendente de Cam, o amaldiçoado filho de Noé. Os edifícios em questão eram os famosos “zigurats”, templos construídos em forma de torre escalonada, que serviam de serviam para observações astronômicas. A propósito, o rei Ninrode era um importante personagem na maçonaria operativa, tendo sido apontado, inclusive, como “pai da maçonaria antiga”, conforme uma antiga Old Charge (o manuscrito Cooke, +- 1410).
[8)Vejam-se as nossas obras “Conhecendo a Arte Real” publicada pela Ed. Madras e Mestres do Universo, publicada pela Ed. Biblioteca 24x7.
[9] Esse é centro do simbolismo desenvolvido pelo curioso Drama de Hiram. O poder deve ser conquistado pelo mérito, através do trabalho constante e do estudo meticuloso. Os que o procuram obter pela violência e pela força terão sempre o destino dos Jubelos da lenda.
[10] Essa “maquete” foi a Israel bíblica, que tornou-se um povo com Abraão e uma nação com Moisés. O simbolismo arcano do Templo de Salomão reflete essa sabedoria e na sua constituição revela-se a Palavra Perdida, que foi perdida novamente após a destruição daquele edifício e só é reencontrada nos mistérios da paixão de Cristo. Esse é o segredo revelado no simbolismo dos graus superiores do Arco Real e nos graus filosóficos do REAA.
João Anatalino

MAÇONS, MANIQUEÍSTAS E CÁTAROS

Autor: João Anatalino.

Os Gnósticos

Grande parte da literatura religiosa cristã foi produzida pelos filósofos gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo. Embora a Igreja Católica tivesse expurgado o Novo Testamento das ideias que guardavam alguma relação com cultos pagãos da antiguidade, práticas mágicas e outras tradições esotéricas, não muito de acordo com os cânones adotados pelo catecismo católico, os evangelhos canônicos não estão livres da influência gnóstica. O Evangelho de São João, principalmente, é francamente inspirado naquela escola, bem como o livro do Apocalipse e certas concepções do Apóstolo Paulo. 
O Concílio de Nicéia, realizado nessa cidade em 325 da era cristã, fez uma revisão dos todos os textos religiosos existentes naquela época e decidiu quais eram aqueles que serviam á verdadeira fé e quais eram perniciosos. A grande maioria dos escritos gnósticos e principalmente os chamados Evangelhos produzidos por escritores que professavam essa corrente filosófica, foram colocados na categoria de apócrifos, e dessa forma proibidos de serem divulgados na comunidade cristã. Com a vitória do cristianismo como religião oficial do Império Romano, esses textos foram colocados definitivamente na clandestinidade e oficialmente banidos, por força de lei, de qualquer tipo de mídia da época. Assim, por volta do século V, os praticantes das doutrinas gnósticas se refugiavam em círculos muito restritos, principalmente em razão da perseguição que lhes movia o clero e as autoridades seculares. Foi nessa época que nasceram as chamadas heresias, pois as ideias contrárias ás doutrinas professadas pela Igreja, que antes eram discutidas á luz do debate meramente filosófico, passaram a ser consideradas como perigosas para a ordem pública. 
Mas a Gnose, enquanto disciplina filosófica não desapareceu, como queriam os doutrinadores do cristianismo ortodoxo e influenciou alguns dos maiores pensadores da cristandade. Um de seus ramos, o chamadomaniqueísmo, doutrina fundada por um sacerdote de nome Mani, nascido na Babilônia em 216 da era cristã, teve como discípulo nada menos que o célebre Santo Agostinho, um dos luminares do pensamento católico medieval.

O Maniqueísmo

Os maniqueístas, diferente dos demais gnósticos, que admitiam três princípios atuantes na criação do cosmo, acreditavam que esses princípios eram apenas dois: a Luz e as Trevas. Desse eterno embate entre o principio luminoso (o Pai da Luz), e o principio das trevas (O Rei da Escuridão), surgiu tudo que existe no mundo. O “Rei das Trevas” já foi um dia habitante do “país da luz”, mas dele partiu, com um inumerável séquito, após “desentender-se com o Pai da Luz”. Nessa doutrina está inserta a antiga ideia, esposada pela teologia judaica, de que houve um dia uma revolução no céu e uma horda de entidades celestes, chefiada por um arcanjo de nome Lúcifer (Anjo de Luz, o luminoso) se indispôs com o Criador e se tornou o seu opositor.

Na doutrina desenvolvida por Mani, um verdadeiro enredo histórico foi elaborado. Uma grande guerra travou-se no céu onde duas fações lutaram. De um lado os partidários da Luz e do outro os partidários das Trevas. Na luta que então se travou pela posse do universo, o exército do “Pai da Luz” foi comandado pelo Homem Primordial, uma entidade criada por ele na sua primeira manifestação. Foi esse “Homem Primordial” que liderou as forças do Pai da Luz. Todavia, capturado em uma batalha pelos partidários das trevas, o Homem Primordial foi por eles devorado. Para salvá-lo, o “Pai da Luz” evocou uma nova força, o “Espírito Vivo”. Este, tendo gerado cinco filhos, derrotou os “Filhos das Trevas” e construiu a matéria universal com a substância dos seus cadáveres. 

Quando o Homem Primordial foi afinal liberado das trevas, deixou que lá ficasse uma réstea da sua luz. Com ela o ‘Rei das Trevas” engendrou Adão e Eva, onde encerrou a réstea de luz do Homem Primordial. Será essa réstea de luz, no entanto, que permitirá, quando liberada, a volta do homem ao seio do “Pai da Luz”. Daí porque a vida do homem, e toda a sua longa história de sucessivas mortes e reencarnações, ser nada mais que uma “jornada em busca dessa luz”, que nele habita e constitui o único elo entre ele e o Criador. 

Esse imaginativo enredo elaborado por Mani é, na verdade, uma curiosa metáfora inspirada por antigas tradições cultivadas por egípcios, babilônios e judeus, nas suas tentativas de explicar o universo. Na verdade, no fundo, o que se expressa nessas estranhas escatologias é nada mais, nada menos, do que o mito solar. De uma forma ou de outra, todas as antigas religiões tinham no sol o seu símbolo maior de divindade, denotando já a velha intuição taumatúrgica de que a vida na terra só era possível graças á ação desse astro que ilumina a nossa galáxia. O sol era a representação da luz. Quando ele se ausentava, reinava a escuridão no mundo. A luz, que era o dia, era boa. A treva, que era a noite, a escuridão, era má. Essa noção informou a maioria das religiões da antiguidade.
No Egito, a luz do sol era simbolizada pela divindade maior do panteão egípcio, o deus Rá. Já a escuridão era a essência de Seth, o deus das trevas. Na Pérsia e Mesopotâmea, a luz era a qualidade do deus Aura-Mazda, e as trevas do deus Arimã. Para os israelitas, Jeová era o deus que fez o mundo tirando a luz das trevas e Satanáz o deus do mal, que perverte a criação. 
E todas essas tradições religiosas, com algumas variantes, usavam o mesmo enredo escatológico na concepção das suas cosmogonias. Os egípcios tinham o seu Homem Primordial na pessoa do deus Osíris, que veio á terra para civilizar os homens e foi “morto” pelo seu invejoso irmão Seth. Os persas e babilônios tinham em Mitra o seu “homem primordial”, e os israelitas centralizaram no seu Messias essa figura. Com as variações que cada cultura deu a esse mito, todas estavam se referindo ao mesmo arquétipo. 

O maniqueísmo, embora seja considerada uma doutrina cristã, a influência que mais se faz presente nela é persa, como se pode notar. É uma doutrina profundamente influenciada pelo mitraísmo. Como geralmente se pensa, ela não é uma doutrina baseada na luta entre o bem e o mal. Pelo fato de considerar o mundo material, e o próprio ser humano como produto do deus das trevas, todo o universo maniqueísta é fundamentalmente mau. Porque a humanidade não foi criada pelo Deus da Luz (o deus bom), mas sim pelo Deus das Trevas (o deus mau). A “centelha de luz” que existe no homem é a sua alma. Somente essa ínfima parte da essência humana pertence ao mundo da Luz. E ela está presa na matéria, que é nosso corpo. Somente através de uma vida ascética, na qual todos os desejos do mundo sejam sublimados, os homens poderão expulsar de si as trevas da qual são feitos e isolar a “réstea” de luz, (único elemento divino que há dentro dele). E somente como pura luz poderá voltar ao seio do seu criador, o “Pai da Luz”.

Essa era também uma crença compartilhada pelos essênios, uma seita de judeus fundamentalistas que se retiraram para o deserto em princípios do século II a. C. para viver uma vida ascética, capaz de purificar seus espíritos. A ideia de um reino messiânico, comandado por um príncipe-sacerdote teve nos essênios a sua mais perfeita modelagem. Eles criaram uma verdadeira Irmandade para viver esses princípios porque realmente acreditavam que um dia a Luz venceria as Trevas e esse reino seria estendido para toda a humanidade. E foram os essênios os principais inspiradores do cristianismo primitivo, aquele pregado por Jesus e seus discípulos originais.

Mas não só na semelhança de ideias e uso comum de símbolos, os maniqueístas se assemelhavam aos essênios. Na austeridade de conduta, na vida monástica, no ascetismo da vida diária, na ideia da necessidade de iniciação nos “mistérios” da seita, no desapego pelos bens materiais etc. fazem dos seguidores de Mani os herdeiros das tradições inauguradas por aqueles “eleitos de Israel”.
Por seu turno, a influência dos maniqueístas se fez sentir em várias seitas que causaram muita preocupação na Igreja durante toda a Idade Média. Uma delas foi a seita dos Bogomilos, uma comunidade que se desenvolveu nos Balcãs e se espalhou por toda a Europa central nos séculos X e XI. Os Bogomilos foram violentamente perseguidos pela Igreja Católica e praticamente exterminados nas regiões de influência da Igreja Romana. Não obstante deram origem a outro grupo de ideías e práticas semelhantes, conhecido como Cátaros. 

Os Cátaros

Os grupos Cátaros mais célebres habitaram regiões da França, Alemanha e norte da Itália. Mas o local de maior concentração e influência desses grupos foi a região conhecida como Provença, no sul da França, onde se falava o provençal, a chamada lang’doc, como era conhecida o provençal. Daí essa região ser conhecida como Languedoc. 

No começo do século XIII a região conhecida como Languedoc não fazia parte do território francês. Era constituída por um conjunto de principados independentes governados por várias famílias nobres, entre as quais os condes de Toulouse e Trancavel. Incluía importantes cidades como Toulose, Montpellier, Avignon, Narbonne e Marselha. A cultura nessa região era a mais avançada que se podia encontrar na Europa medieval. Mantinha estreitas ligações com os árabes, e seus príncipes eram largamente tolerantes com judeus e mouros, em cuja população eram bastante representativos. A região do Languedoc constituía uma exceção numa Europa dominada pelo barbarismo e pelo obscurantismo religioso. Foi em Lunel e Narbonne, por exemplo, que se desenvolveram as escolas cristãs dedicadas ao estudo da Cabala. Lá, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo conviviam em paz, sendo mais objeto de estudo do que de disputas. Logo, a Igreja de Roma, com sua intolerância dogmática, não podia ser mesmo admirada na região. Por outro lado, a florescente economia do Languedoc, não raro, era objeto da cobiça dos potentados do norte da França, da Alemanha e da Espanha, dominados por reis católicos.

As doutrinas Cátaras

Os Cátaros, tais como os Bogomilos e os Paulicianos baseavam sua doutrina no embate entre a luz e as trevas. Como vimos, essa doutrina havia sido proposta originalmente por Mani, sacerdote de origem persa, que no século II da era cristã sintetizou as várias doutrinas gnósticas existentes na época, criando um sistema de pensamento que ficou conhecido como maniqueísmo. Esse sistema fundia elementos de cristianismo, judaísmo, zoroastrismo, taoísmo e hinduísmo, a partir de uma idéia básica que está na raiz de todas essas religiões, ou seja, a de que o mundo se equilibra entre duas forças fundamentais, que ele definiu como sendo a luz e as trevas. No desenvolvimento dessa concepção, Mani elencava os vários fundadores de religiões, como Buda, Zoroastro, Moisés, Jesus, como “mensageiros da luz”, pessoas escolhidas pelo Pai da Luz, o Deus bom, para ensinar as pessoas a libertar seus espíritos da prisão da matéria e encontrar a iluminação. Assim, os Cataros desenvolveram a concepção de que o universo material era um mundo essencialmente mau porque tinha sido feito pelo Deus das trevas. Dessa forma, a idéia de que Deus tenha mandado ao mundo seu próprio filho para salvar uma criação má era contraditória. A humanidade nunca se perdera, como ensinava a doutrina católica. Ela já nascera perdida porque era cria do Deus das trevas. Só podia ser salva pela constante e metódica depuração de seus elementos materiais, transformando-se, toda ela, numa entidade espiritual, liberta de todos os sentidos carnais e impurezas mentais que a experiência humana acumula sobre o espírito. O espírito humano deveria buscar a perfeição. Daí os sacerdotes Cátaros serem chamados de parfeits. Justifica-se também a vida rigorosamente ascética que os seguidores dessa doutrina recomendavam aos seus adeptos. Entre outras coisas, essas crenças afastaram completamente os Cátaros da Igreja de Roma, pois esta, para eles, era a própria encarnação desse mundo materialista, mau e dissoluto. Jesus, para os Cátaros, fora um grande profeta, que como Buda e Zoroastro, ensinou aos homens um caminho baseado no amor e no desapego pelos bens materiais (como pregavam também os franciscanos) para se chegar á iluminação. O clero católico era a antítese desse caminho, pois incentivava a violência, a guerra, a cobiça e o apego aos bens materiais. O próprio nome Roma era o contrário do nome de Deus, que para eles era Amor.

Em 1208, o assassinato de um bispo católico, supostamente cometido pelos Cátaros, desencadeou a chamada Cruzada Albigense. O papa Celestino III mobilizou um enorme exército no norte da França, composto principalmente por senhores feudais, interessados nas riquezas das cidades do Languedoc. Uma força armada, comandada pelo líder cruzado Simão de Montfort, invadiu e sitiou a maioria das cidades da região, chacinando grande parte da população, simpática á doutrina Cátara. Para subsidiar a cruzada e erradicar o que a Igreja de Roma chamava de heresia Albigense, o papa encarregou o monge dominicano espanhol, chamado Domingos de Guzman, de fundar uma instituição para descobrir e punir todo e qualquer tipo de pensamento ou comportamento que contrariasse a doutrina católica. Assim nasceu a infame organização conhecida como a Irmandade da Santa Inquisição, da qual a Igreja e muitos reis iriam se aproveitar para eliminar seus opositores. 
Durante a cruzada albigense o exército cruzado praticamente dizimou metade da população do Languedoc. Mas não conseguiu eliminar a doutrina Cátara da mente das pessoas. Elas sobreviveram principalmente entre os Templários e mais tarde, foram adotadas por muitos pensadores que viriam a influir sobremaneira as ideias que desembocaram na Reforma religiosa do século XVI, encabeçada por Martinho Lutero. 

Influência na Maçonaria

Os Cátaros legaram á Arte Real algumas inspirações litúrgicas. Seus sacerdotes eram considerados mestres perfeitos (parfaits), que conduziam suas assembleias á maneira das reuniões maçônicas das antigas Lojas operativas. Sua postura antidogmática tem sido constantemente invocada como análoga áquela que existe na Maçonaria moderna. 
Muito provavelmente, certas posições da Igreja Católica em relação aos maçons estão, de certa forma, ligadas á associação que alguns padres de orientação fundamentalista fazem entre a Maçonaria e seitas heréticas como a dos Cátaros. Evidentemente esses sacerdotes desconhecem tudo o que se relaciona com a Arte Real. A Maçonaria não adota as doutrinas Cátaras, nem se guia pelos seus catecismos, embora, na sua organização secular algumas influências possam ser notadas, tais como a simbologia arcana, o segredo corporativo, a prática da filantropia e a sua formulação iniciática. Registre-se, principalmente, que o Catarismo era uma seita religiosa e a Maçonaria é, antes de tudo, um movimento que reclama influência na vida social e política das nações, mas não nas crenças religiosas das pessoas. A Maçonaria respeita todas as crenças e não orienta seus adeptos em relação a nenhuma delas. No repertório da consciência humana cabem todas as orientações desde que elas tenham por objetivo conduzi-la a um aperfeiçoamento das virtudes que fazem um homem justo, ético e virtuoso em suas ações. 
Malgrado suas posições doutrinárias, que são discutíveis, como aliás, todas são, o maniqueísmo e o catarismo têm seus momentos de beleza estética, que encanta a mente do homem que busca o conhecimento. E como disse Ramsay, o maçom é o homem de espírito esclarecido, maneiras gentis e humor agradável, que se guia pelo amor às belas artes, e pelos grandes princípios de virtude, ciência e religião. Por isso encontraremos, nos rituais maçônicos, muitas referências a essas disciplinas.

João Anatalino