quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XVII

O FANTASMA DO PAPA

João Anatalino Rodrigues

Fortalecido pela decisão dos Estados Gerais, Filipe decidiu ir a Poitiers se encontrar com Clemente V. Este, já ciente do que acontecera na Assembleia de Tours, e mesmo tendo tomado a decisão de abrir o processo contra a Ordem, como o rei queria, ficou bastante preocupado quando, em fins de maio daquele crucial ano de 1308, o monarca francês entrou em Poitiers com um pequeno exército. “Será que o rei veio prender-me, como fez com Bonifácio VIII?”, pensou o papa Clemente V, quando o séquito real cruzou as portas da vetusta cidade. 

A presença de Filipe em Poitiers, acompanhado de uma pequena força armada e um grande número de deputados que estiveram presentes na Assembléia de Tours, além de intimidar o papa, gerou vários problemas logísticos em Poitiers, pois a cidade não estava preparada para hospedar um contigente tão grande de pessoas. Poitiers já estava sobrecarregada com a corte papal e os cidadãos, desalojados de suas casas para abrigar os novos hóspedes, não pouparam críticas ás autoridades e estiveram a ponto de provocar um verdadeiro motim, pois os custos com essa verdadeira expedição de intimidação ao papa foi coberta pelo lançamento de uma taxa especial sobre a comercialização de alimentos e outros produtos. A revolta esteve latente por toda a cidade e só não foi deflagrada graças á presença da força armada do rei. 

Mas o rei apresentou-se ao papa com uma alegre disposição de humor e se mostrou estranhamente humilde. Ajoelhou-se, beijou-lhe a mão e cumpriu todo o protocolo exigido para ocasião. Depois revelou a sua razão de vir a Poitiers.

– Viemos falar com Vossa Santidade a respeito do nosso projeto de uma nova cruzada – disse Filipe.

– Vossa Majestade está com a intenção de fazer uma nova cruzada para recuperar os lugares santos? – perguntou o papa.

– Sim, Santo Padre. – Queremos a vossa benção e toda ajuda necessária.

– A nossa benção Vossa Majestade já tem – respondeu o papa. – Quanto á ajuda, é preciso que conversemos a respeito. 

– É por isso que viemos – disse o rei – com um sorriso ambíguo.

Essa era, todavia uma desculpa. Filipe não tinha em mente nenhuma cruzada. Dispensada a audiência protocolar, onde vários cardeais e nobres que acompanhavam o rei estavam presentes, o papa ficou sozinho com o rei, Guilherme de Nogaret, Carlos de Valois e Guilherme de Plaisians. Nessa ocasião Filipe declinou a verdadeira razão que o levara a sair de Paris e vir até Poitiers se encontrar com ele. Foi então que a tempestade foi desencadeada.

– Vossa Santidade está nos causando muito desgosto com essa atitude em relação aos Templários – queixou-se o rei.

– A Santa Sé não pode agir imprudentemente – respondeu o papa. – Temos o dever de garantir um julgamento justo a todos os nossos filhos.

– Os Templários deixaram de ser filhos da Santa Madre Igreja quando decidiram se entregar á heresia – interviu Guilherme de Nogaret. ─ Eles se dizem “Filhos da Viúva”, adoradores de deuses estrangeiros, pois é assim que eles chamam a Virgem Maria, que na verdade, para eles é Ísis, a deusa egípcia da fertilidade. 

─ Pareceis saber muito sobre essas coisas, Messire Nogaret ─ disse Carlos de Valois, com certo sarcasmo.

─ Eles não fazem nenhuma questão de esconder isso ─ Messire Valois ─ respondeu Nogaret. ─ Um dos altos dignatários do Templo me deu essas informações ─ completou, sem comprar a provocação.

─ Isso é heresia pura ─ disse Filipe.

─ Se for verdade...─ disse Valois, dando de ombros.

– Ainda há muita coisa a ser apurada até que se possa imputar o crime de heresia a eles – respondeu o papa. – Até o veredicto final, temos que aceitar a presunção da inocência.

– Eles já confessaram todos os crimes de que são acusados – retrucou, colericamente, Filipe. – O que mais resta para ser apurado?

– Existe a alegação de que suas confissões foram extraídas sob tortura – salientou o papa.

– A tortura é um recurso admitido em lei para extrair confissões. Foi sancionada pelo Papa Inocêncio IV e a Igreja a utilizou em larga escala durante a Cruzada Albigense – lembrou Guilherme de Nogaret, que certamente estava pensando nos seus próprios ancestrais cátaros, torturados e queimados naquela cruzada.

– Era outra situação – respondeu Clemente V. – Certamente Messire Nogaret não quer comparar os Templários com os hereges cátaros.

– Pois eu não vejo diferença nenhuma – disse Filipe – E pelo que já foi apurado, não duvido que sejam piores e mais perigosos. Os cátaros não tinham os recursos do Templo, nem estavam disseminados por todos os reinos cristãos.

─ Se os Templários são maus ─ respondeu o papa ─ eu tenho o dever de odiá-los. Mas não posso agir precipitadamente. Não vou punir ninguém antes de investigar e estabelecer honestamente a culpa deles. 

─ A culpa deles já está firmemente estabelecida ─ retrucou Guilherme de Plaisians. ─ Vossa Santidade não pode adotar essa política de morder e assoprar. 

Ele estava se referindo ao fato de Clemente ter pedido aos demais reis da cristandade que prendesse os Templários, e ao mesmo tempo, tratá-los com brandura e comiseração.

─ Vossa Santidade precisa fazer imediatamente três coisas ─ disse Plaisians: ─ Primeiro, concitar todos os prelados da Igreja e os reis cristãos a agir para liquidar de vez esse monstro maligno que é a Ordem do Templo. Segundo, devolver ao Inquisidor-Mor a competência para conduzir o processo, e finalmente, extirpar do seio da Igreja a Ordem do Templo através de uma provisão apostólica, sem esperar pela conclusão de um processo eclesiástico, que, com toda certeza, seria demasiadamente longo e custoso.

Como se o papa não se mostrasse muito convencido, ele prosseguiu.

─ Se a mão direita, que é o braço eclesiástico, se mostra deficiente para a defesa do corpo sagrado, não deve a mão esquerda, que é o poder temporal, agir para fazer justiça? ─ disse Plaisians, apelando para sua verve de advogado. E para reforçar ainda mais a ameaçadora metáfora que sua fértil mente de causídico estava construindo, ele continuou. 

─ Se ambos os braços forem deficientes, então cabe ao povo levantar-se em defesa da fé. Assim, se o papa não agir, o príncipe e o povo se levantarão em seu lugar para fazê-lo. 

E concluiu: ─ Que coisa será mais vergonhosa para o papa se ele deixar de defender a própria Igreja e se tornar cúmplice de uma heresia?

Como o papa não respondesse, Plaisians continuou.

– A veracidade dos crimes cometidos pelos Templários está mais que provada. Não se pode permitir que a pronta administração da justiça, num caso como esse, em que a fé cristã e própria Igreja estão sendo ameaçadas, seja impedida. A forma legal de um processo como esse foi cumprida. Não podemos, agora, por conta de um problema secundário (Guilherme estava se referindo ao fato de o processo ser desencadeado pelo rei e não pela Igreja), deixar de aplicar o que é justo.

O papa deu sinais de que pretendia falar alguma coisa. Guilherme de Plaisians não lhe deu aparte. Talvez adivinhasse que o Santo Padre iria objetar quanto á forma como o inquérito tinha sido conduzido e as condições em que as confissões foram obtidas.

– Não devemos nos inquietar em saber como e por quem os crimes dos Templários foram revelados – disse Plaisians. – Mesmo que essas informações tenham sido trazidas por pessoas leigas, ou de alguma forma dissidentes do Templo, se elas foram confirmadas perante os inquisidores ou seus prelados. A defesa da fé é uma prerrogativa de todos...

Não podia haver recado mais claro. Clemente V sabia que não adiantaria insistir que as confissões foram extraídas sob tortura e confirmadas por pessoas que foram expulsas da Ordem por comportamento vicioso. Essas pessoas certamente tinham um desejo de vingança e o estavam expressando nesse caso. O papa logo compreendeu que Filipe não estava precisando da sua anuência para dar o desfecho que quisesse a esse caso. Faria o que bem entendesse com a sua concordância ou sem ela. Concluiu que nada teria a ganhar se opondo ao rei. Aliás, poderia perder tudo se o fizesse. 

A mensagem, apesar da metáfora empregada, era clara e insofismável. Mas ainda assim Clemente não cedeu. Reiterou que não condenaria os Templários sem o devido processo legal e principalmente, enquanto os bens do Templo não fossem postos á disposição da Igreja.

Esse era o âmago da questão. Os bens do Templo.

– Os bispos que foram mandados por Vossa Santidade para ouvir os Templários os incitaram a negar as confissões que já haviam feito – disse Guilherme de Paisians, que parecia ter assumido o papel de principal advogado da causa do rei. – O rei – acrescentou ele – publicará os nomes de todos aqueles que estão conspirando para que esses crimes não sejam devidamente punidos. O povo o exige e a assembleia dos Estados Gerais assim o decidiu.

Como se o papa permanecesse calado, ele prosseguiu.

– Existe a suspeita de que Vossa Santidade quer favorecer os Templários. Eles mesmos tem se gabado disso dizendo que o Santo Padre não permitirá que nenhum mal lhes seja feito. Por causa disso, a virtude do rei está sendo posta em dúvida pela vossa inércia. – Assim – prosseguiu o porta-voz do rei, implacável. – Vossa Santidade precisa agir rapidamente para sanar os males que foram feitos com as dúvidas levantadas pelos bispos. Com isso a Igreja estará provando que tem, realmente, inclinação para o que é justo e para o bem.

Filipe pediu ao papa permissão para que eles ficassem sob sua guarda. Prometeu levar na devida conta os interesses da Igreja e preservar o clero de novas investidas tributárias.

O papa, que desconfiava das verdadeiras intenções do rei, respondeu que os bens do Templo deveriam ser utilizados nas finalidades para os quais eles foram doados á Ordem. Essas finalidades eram, precipuamente, a preservação da Terra Santa e as atividades filantrópicas praticadas pela Ordem.

– Exatamente para esse propósito é que a Igreja deve consentir que esses bens fiquem sob a nossa guarda – disse Filipe. – Vossa Santidade sabe da nossa disposição de empreender uma nova cruzada para recuperar os lugares santos – completou – lançando a isca.

– Quanto a isso poderemos conversar – respondeu o papa, que não mordera a isca. – Mas sobre a destinação dos bens do Templo – completou – isso não poderá ser feito até que a própria Ordem seja julgada e se for o caso, suprimida. E isso só acontecerá depois que o inquérito, conduzido de maneira séria e isenta, esteja terminado.

Filipe e principalmente Nogaret não contavam com essa súbita teimosia do papa. A intimidação feita por Guilherme de Palisians não obtivera o efeito pretendido. 

– Vossa Santidade tem razão quanto a isso – interviu Nogaret, que até então tinha se mantido calado. – Que a Igreja dirija o inquérito e ao final, faça com esses hereges o que ela decidir. Creio que Sua Majestade não se importará em mandar para Poitiers os prisioneiros que estão em Paris, disse ele. Assim Sua Santidade poderá interrogá-los como quiser ─ disse Nogaret olhando para o rei. 

O rei percebeu a manobra do seu ministro e concordou com um aceno de cabeça. 

– Todavia – prosseguiu o inflexível ministro – sabemos que a Igreja não tem celas suficientemente seguras para guardar os prisioneiros, como sabemos. Alguns deles, que foram presos em outras preceptorias, já se evadiram, segundo nos foi informado. Então eles deverão ficar guardados nas prisões do rei, a pedido da Igreja. Os prelados e os inquisidores destacados por Vossa Santidade terão carta branca para visitá-los e interrogá-los da forma como for disposto.

O papa percebeu a manobra de Nogaret. Não gostava da proposta, mas na atual conjuntura, não via como contestá-la. Não podia negar que Nogaret tinha razão. A Igreja não tinha estrutura suficientemente segura para guardar prisioneiros daquela ordem e importância.

– Parece-me justa e providencial a proposta de Messire Nogaret – concordou Clemente V. – Concordo com a remoção deles para as prisões reais. ─ Aliás ─ prosseguiu o papa, com um olhar de queixa para Filipe, o Belo ─ sei que os altos dignatários do Templo estão confinados no Castelo do Templo e sob a vossa guarda. 

. ─ Poderei inquiri-los lá, se Vossa Santidade julgar necessário. Quanto aos setenta e dois cavaleiros que estão presos em Paris, nós os removeremos para Poitiers ─ disse Nogaret. 

─ Assim está bem ─ concordou o papa. ─ Mas quanto aos bens do Templo... 

Nogaret não o deixou terminar a frase.

– Quanto aos bens da Ordem – respondeu Nogaret, tirando de uma pasta de couro um documento redigido em francês – eles serão entregues á guarda dos bispos e dioceses onde eles estão situados, para que sejam bem e fielmente administrados com prudência e precaução. Para salvaguarda dessas medidas o rei designará intendentes de sua confiança, os quais terão plenos poderes sobre essas administrações, respondendo perante á coroa e á Igreja, todo ano, sobre as contas a eles relacionadas. 

Clemente V engoliu seco. Percebeu que tudo já tinha sido resolvido por Filipe e Nogaret. Aquela conversa era apenas pró-forma.

– Parece que Vossas Excelências já têm tudo preparado – disse Clemente V, demonstrando certa amargura na voz.

– Desejamos poupar Vossa Santidade dessas questões aborrecidas – respondeu Nogaret, com sarcasmo. 

– Mas Vossa Santidade poderá designar superintendentes para receber as contas todos os anos e ao final, a conta definitiva – continuou o inflexível Lorde Guarda Selos. Ele estava agora lendo, textualmente, o documento.

“Depois da prestação de contas, o dinheiro arrecadado só poderá ser útil e seguramente guardado pelo rei, que dará um recibo aos bispos das somas provenientes das suas dioceses e aos superintendentes, do total das somas recebidas cada ano no reino da França”

“O rei se compromete por escrito de que não entregará esse dinheiro para qualquer outro uso e não o entregará com essa intenção, sem ordem da Igreja, ouvida a opinião do rei.”

Na cláusula seguinte, Filipe rematava seu pensamento acerca do papa e da Igreja a quem jurava servir e defender:

“O rei não duvida do papa atual, mas não pode garantir-se acerca dos seus sucessores. Por isso considera prudente e sensato, no interesse da defesa da Terra Santa, que esse dinheiro só poderá ter esse destino, e que para esse fim, será necessário consultar o rei e seus sucessores.”

– Vossas Excelências esperam que eu concorde com esse documento? – perguntou o papa.

– É do maior interesse de Vossa Santidade e da Santa Madre Igreja que o façais – respondeu Nogaret.

– De qualquer modo – disse Filipe, levantando-se. – É o que foi decidido pelo povo da França. – Tenho certeza que Vossa Santidade não deseja contrariá-lo.

– Vejo que Vossas Excelências já têm tudo arranjado e só me resta concordar com essas disposições – disse o papa, levantando-se. Sentia-se muitos anos mais velho do que realmente era. A figura alquebrada de Bonifácio VIII assumiu, por inteiro, a tela da sua memória. 

Antes de sair do aposento, não foi poupado de ouvir a desagradável voz de Nogaret lendo as cláusulas finais do documento:

“Todos os Templários presos em território francês serão entregues á Igreja, que encarregará o rei da sua guarda, e este os apresentará a pedido do papa e dos bispos”. 

“Estes julgarão os acusados de suas respectivas diocese, exceto o Grão-Mestre geral, o Inspetor-Visitador da França e os Preceptores das províncias de Além-mar, da Normandia, de Poitou, Aquitânia e Provença, cujos julgamentos o Santo Padre se reserva, assim como de pronunciar o destino da Ordem.”

“Se a Ordem for suprimida, os seus bens não poderão ser aplicados, no todo ou em parte, senão em auxiliar a Terra Santa, conforme a intenção dos doadores... E assim como Deus o inspirou ao papa e ao rei (...) Os lucros terão igual destino (...)”

“Quanto ao restabelecimento dos poderes da Inquisição, o Supremo Pontífice fará tudo que lhe compete junto ao Sacro Colégio para que esses poderes lhes sejam resguardados e exercidos juntamente com os prelados designados pela autoridade papal (...) ” 

Em suma, Filipe estava dizendo em claro e bom tom que tudo já estava resolvido e aquela conversa era só pró-forma.

– Agora a vossa assinatura – pediu Nogaret, com a pena na mão.

Com a mão trêmula, como se estivesse assinando a própria abdicação, Clemente V assinou. 

Clemente percebeu que seria prisioneiro de Filipe, o Belo, enquanto permanecesse em Poitiers. Essa foi a principal razão de ele ter se decidido a transferir a corte papal para Avignon. Lá, pelos menos, ele se sentiria mais livre. Não podia voltar para Roma por que seus inimigos na capital italiana eram em maior número do que em território francês. Por outro lado, se o fizesse, incorreria na cólera de Filipe e ficaria sem nenhum apoio. Ele estava em uma encruzilhada. Fosse qual fosse o caminho que tomasse, nenhum deles iria ser fácil de trilhar. Naquela noite, o fantasma de Bonifácio VIII foi o único companheiro da sua insônia.













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