quinta-feira, 12 de outubro de 2017



OS MONGES MALDITOS 

CAPÍTULO II

O REI OBSTINADO, MONGE TEIMOSO

João Anatalino Rodrigues

Filipe IV, rei da França, apelidado o Belo, era um homem de incrível tenacidade, combinada com uma desmedida ambição. Aliava a política à religião de uma forma tão compacta que não conseguia, ou não queria, distinguir uma coisa da outra. Sua filosofia política era informada pela teologia, o que fazia dele muito mais um rival do papa em seu desejo de ser visto como o principal defensor da fé cristã, do que um rei, cujo compromisso era reinar em benefício de um povo. Aliás, as tarefas do reino, no que concernia à política interna, a administração, a economia e demais tarefas de um monarca, ele deixava por conta de seus ministros, bailios e senescais. Suas principais ocupações, além daquelas concernentes a religião, eram as campanhas militares e as artes cavalarianas, nas quais era mestre.

Embora ostentasse um ar de majestática ausência em relação aos problemas do dia a dia do reino, quem o conhecia de fato sabia que essa postura era mera aparência. Uma face fina, de penetrantes olhos azuis, com uma testa alta e um queixo pronunciado compunham o conjunto de uma cabeça, que se diria, de uma beleza invulgar, não fosse a desagradável impressão de implacabilidade que a imponência daquele colosso ─ que parecia construído em mármore, ─ passava aos seus interlocutores. Recebera o apelido de “Belo”, justamente pela majestade da sua cabeça coroada, que encimava um tronco robusto de homem alto, de largas espáduas e longas pernas, o que fazia dele um indivíduo imponente, cuja portentosa presença física intimidava qualquer oponente. 

Mas não era no rosto de perfeitíssimas feições que ele mostrava a sua férrea disposição. Era nos olhos azuis, de uma frieza glacial, que ele espelhava a profundeza do seu pensamento e refletia a inflexibilidade de uma vontade que não se detinha diante de nada para realizar os seus intentos.

“Se os olhos são a janela da alma, esse rei não tem nenhuma” dizia um bispo, inimigo de Filipe, “pois ele não era um homem nem uma besta. Era uma estátua de mármore, uma coruja, que só observava, com seus olhos frios e distantes, o mundo à sua volta.” 

Essa era a impressão que o rei da França passava ás pessoas que o conheciam. Alguém que se metesse a procurar nos seus olhos, ou no rosto de expressão marmórea, um sinal do que se passava na sua mente, ficaria decepcionado. Seus olhos simplesmente não se mexiam e os músculos da face formavam uma máscara praticamente impassível. Falava pouco e observava muito. Nas audiências públicas, ou nas reuniões do Conselho, ele lembrava, de fato, uma estátua de mármore. Mantinha o proeminente queixo apoiado entre as mãos de dedos longos e fortes, que eram como galhos que saiam de seus braços; estes eram dois possantes troncos que se assemelhavam á colunas apoiadas na base dos cotovelos, a ponto de parecer que estavam fincados nos tampos da mesa, ou nos braços do trono, como se fossem estruturas de pedra lavrada por hábeis maçons cinzeladores de obras de arte. 

Por conta dessa impassibilidade seus inimigos lhe haviam dado o apelido de “rei de mármore”. Mas por dentro daquela imobilidade de estátua de pedra, habitava o gênio implacável de um homem determinado a realizar seus intentos a qualquer custo.

A seu modo, Filipe era um homem religioso, que acreditava, de fato, nas virtudes do cristianismo e nos postulados da Igreja Romana. Talvez nem tanto por convicção de que a fé católica fosse a verdadeira representação da vontade de Cristo na terra, mas porque era a que mais lhe convinha, já que a Igreja de Roma representava, em praticamente todos os estados europeus, a fonte do poder espiritual e a última palavra quanto se tratava de homologar o poder temporal. Filipe havia, na verdade, sobrepujado o poder da Igreja, forçando a eleição de um papa que lhe era submisso. Além disso, ainda obrigara a corte papal a sair de Roma e a trouxera para Poitiers, em terras francesas, de onde depois ela seria removida para Avignon, onde ele poderia, a qualquer momento, pressioná-la quando lhe conviesse. Assim, a Igreja estava agora sob seu controle, com o papa sob sua guarda e bispos indicados por ele em todas as dioceses importantes da França. 

Afora isso, Filipe, o Belo, tinha vencido praticamente todas as resistências internas ao seu projeto de um forte Estado nacional. Através de alianças políticas e casamentos arranjados, ou mesmo por conta de eliminação física e imposição por força armada, ele reduzira o poder da nobreza a um mínimo controlável. A França, sob seu reinado, se tornara a nação mais poderosa da Europa, com um nível de unificação política que só fora alcançado séculos antes, sob o império de Carlos Magno e seria repetida séculos depois, sob a dinastia dos Bourbons. 

Talvez esse fosse seu sonho: repetir o feito do seu antepassado famoso, tornando-se o líder da cristandade. Carlos Magno fora o único monarca, depois da queda de Roma, a ser considerado um verdadeiro sucessor dos antigos imperadores romanos. A própria Igreja o havia revestido nessa condição e essa era a ambição de Filipe, o Belo. Por isso é que enquanto passeava pela Europa sua fama de rei piedoso e defensor inflexível da fé cristã, ao mesmo tempo ele procurava debilitar a Igreja que a representava, impondo-lhe um líder politicamente enfraquecido, contestado pelo restante da cristandade, e um clero submisso que se preocupava mais em atender aos desígnios do rei do que da instituição a que pertencia. 

Mais não fora, ele pertencia a uma dinastia, cujas ligações com a Igreja de Roma eram históricas. Os Capetos, desde seu fundador, Hugues I, sempre se arvoraram em defensores da fé católica, e nada menos que Luís IX, o famoso avô de Filipe, havia sido recentemente canonizado por sua intransigente defesa dos valores cristãos. Destarte, Filipe IV, o Belo, havia sido educado nos ardores de uma fé que não conhecia nem admitia qualquer sinal de controvérsia. Segundo se dizia dele, Filipe acreditava piamente na tese dos direitos divinos do rei e que havia sido “ungido com os santos óleos que vieram do céu, trazido por uma pomba por ocasião da coroação do seu primeiro antecessor, Clóvis I.” 

Politicamente ele seguia a tendência da época, de buscar a consolidação do Estado em uma monarquia forte e centralizada, onde o poder real não estivesse tão sujeito á ser minado pela nobreza feudal e influenciada pelo poder da Igreja. Consciente como era das incertezas políticas do seu tempo, não permitiria que na França ocorresse a mesma coisa que ocorrera com o rei da Inglaterra, João, o Sem Terra, cerca de cem anos antes, o qual fora obrigado a assinar uma Magna Carta, documento que contestava o direito divino dos reis e concedia aos barões ingleses uma liberdade que estava além do seu controle. Por isso ele, Filipe, lutara, com unhas de dentes, contra os privilégios da nobreza e trabalhara contra suas próprias convicções, de adepto das tradições cavaleirescas, para fortalecer o poder central.

Não obstante, encontrara em Jacques de Molay um adversário à altura. O velho Grão-Mestre da Ordem do Templo era um osso duro de roer. Homem teimoso e cioso de sua autoridade como comandante supremo de uma organização que só devia satisfação ao papa, Filipe via nele o principal óbice ao seu projeto de liquidar com o último bastião de resistência ao seu projeto de um Estado nacional. 

Na verdade, as relações entre os Templários e a coroa francesa já andavam tensas desde algum tempo. O rei devia muito dinheiro a Ordem. Era comum ele se valer dos fundos Templários para socorrer o empobrecido tesouro real, sucessivamente esvaziado pelas campanhas militares em que os reis franceses, incluindo ele próprio, se envolviam. 

Filipe, o Belo, já não sabia onde mais poderia levantar dinheiro para cobrir o enorme deficit em que se encontravam as contas do reino. No ano anterior ele havia expropriado os judeus e sangrado os banqueiros lombardos, duas outras fontes de renda das quais ele normalmente se valia para recompor o debilitado orçamento real. Aumento de impostos e desvalorização da moeda eram outros recursos comumente empregados para equilibrar as contas públicas, mas essas se revelaram estratégias perigosas, que já tinham lhe dado muita dor de cabeça no passado recente. Eram expedientes que, pelo menos naquele momento, ele queria evitar. Dessa forma, só restava a propalada riqueza do Templo, que ele sabia ser imensa. 

Mas a fama de obstinação e integridade que acompanhava o inflexível comandante do Templo preocupava o rei e aparecia como um óbice a realização do seu projeto. Tivera uma prova disso no ano anterior, quando um incidente o colocara em rota de colisão com Jacques de Molay e lhe mostrara o quanto aquele velho monge-cavaleiro, obtuso e arrogante, iria servir de freio ás suas ambições.

Para fazer face ás altíssimas despesas que tinha com a guerra contra a Inglaterra, em 1304, Filipe reduzira o peso em ouro da moeda francesa, provocando a sua desvalorização em quase dois terços. Isso gerou de imediato uma enorme inflação que atingiu, particularmente, a grande massa do povo, que de uma hora para outra ficou sem condições até de comprar a própria comida. Em consequência, a fome, o desemprego e a desordem se espalharam por todo o país e acabaram desencadeando uma grande revolta popular. Em Paris, o povo faminto e desesperado assaltou o palácio real e obrigou o rei e sua corte a procurar refúgio nas dependências do edifício do Templo, único lugar seguro na cidade naqueles dias. 

Foi nessa ocasião que o rei, vendo a opulência do tesouro templário, aguçou a sua cobiça e começou a pensar numa estratégia para se apoderar dele. A ideia, proposta inicialmente por Enguerrand de Marigny, então seu Intendente das Finanças, e apoiada por Guilherme de Nogaret, o Chanceler do reino, era, em princípio, lançar uma taxação sobre as rendas do Templo e do clero em geral. Porém, a firme recusa de Jacques de Molay em renunciar ás prerrogativas que o Templo possuía, de imunidade a qualquer tipo de taxação, frustrou as intenções de Filipe e fizeram com que ele recuasse no seu intento. No entanto, deve ter contribuído bastante para acirrar sua disposição, já bastante forte, de destruir os Templários e apoderar-se de seus bens. Essa situação foi discutida em uma reunião do Conselho Real, logo após o incidente da revolta popular, onde se buscavam soluções para debelar a terrível crise financeira que assolava o país.

─ Os Templários ─ disse o rei ─ possuem uma incalculável riqueza, enquanto o povo francês passa fome. Essa situação é intolerável. 

─ Concordo plenamente com Vossa Majestade ─ respondeu Marigny. ─ Por direito, os bens do Templo pertencem ao povo da França, pois provém de doações feitas por nobres franceses e de rendas obtidas com a exploração desses bens e dos privilégios a eles concedidos. Essas doações foram feitas para que as Ordens de Cavalaria pudessem manter as possessões cristãs na Terra Santa. Agora elas não mais existem. Portanto, as Ordens também perderam a sua razão de existir.

─ Não seria nenhum mal feito se retornassem a coroa no caso de serem extintas ─ interviu Nogaret, cuja cabeça de advogado já andara pensando em uma solução jurídica para o caso. 

─ Embora os Hospitalários ainda sejam úteis, devidos aos serviços públicos que prestam ─ disse Marigny.

─ Realmente ─ respondeu Nogaret, cuja preocupação estava centrada no Templo. ─ Tendes razão quanto ao Hospital, mas quanto ao Templo, não há mais razão para que continue existindo.

─ Porém ─ interviu Carlos de Valois ─ dirigindo-se a Marigny ─ o papa dificilmente concordará com isso. Não podemos esquecer que o Templo é uma organização eclesiástica e somente a Igreja tem poderes para dissolvê-la. E principalmente para dispor de seus bens, que ao que parece, é a vossa principal motivação para espoliar a Irmandade.

─ Tendes razão quanto a isso ─ respondeu Nogaret, evitando comprar a provocação de Valóis ─, mas podemos pensar em algumas soluções jurídicas para contornar esse obstáculo, se a Ordem for extinta. ─ E como podereis extinguir uma Ordem religiosa que não deve obediência aos poderes seculares, mas somente ao papa? ─ insistiu Valóis.

─ Estamos pensando numa fórmula ─ interviu Marigny.

─ Pensai depressa ─ disse Filipe. ─ O tempo urge. Uma nova revolta popular pode representar a nossa ruína.

─ Não se poderia simplesmente impor uma taxação sobre as rendas do Templo? Diz-se que elas são altíssimas ─ sugeriu Luís, o Cabeçudo, filho mais velho de Filipe.

─ Anualmente arrecadam mais do que uma república italiana de grande porte ─ disse Marigny. ─ Mas essa solução já foi tentada e fracassou, pois o Templo, por lei, é imune à taxação.

─ E se os desapropriássemos, pura e simplesmente? ─ perguntou Filipe, o Longo, segundo filho do rei.

─ Enquanto a Ordem existir e estiver protegida pelas leis em curso, isso é impossível ─ respondeu Marigny. ─ Temos que primeiro acabar com ela ─ completou.

─ Mais cedo ou mais tarde é o que teremos que fazer. Por enquanto ─ disse Nogaret ─ o melhor é negociar com o Templo um empréstimo. Isso aliviaria as dificuldades atuais do tesouro e nos daria mais algum tempo para preparar uma estratégia.

─ A coroa já deve muito dinheiro ao Templo ─ lembrou Carlos de Valóis. ─ O próprio tesouro pessoal de Vossa Majestade, ao que sei, está penhorado com eles. Achais mesmo que eles vão confiar mais dinheiro a quem não paga nem o que já deve?

─ De Molay não ─ disse Marigny. Ele é um velho obtuso e turrão. Não conseguiríamos arrancar um mísero florim dele. Mas Hugues de Peyráuld, o Inspetor-Visitador, é nosso amigo e aliado. Ele não nos negará esse favor. 

─ E o cavaleiro de La Tour, tesoureiro do Templo em Paris, também não se oporá. Afinal, ele só está nesse cargo por indicação de Vossa Majestade ─ lembrou Nogaret.

─ Mas eles não podem fazer isso sem a anuência do Grão-Mestre geral ─ objetou Carlos de Valóis.

─ Na ausência dele sim ─ respondeu Nogaret. ─ E ao que me consta, Jacques de Molay está em Chipre e não voltará tão cedo. 

─ Então vamos aproveitar a ausência dele e correr com isso ─ concluiu o rei. ─ Negociai esse empréstimo antes que o velho turrão volte ─ ordenou ele á Marigny.

─ Sim, Majestade. Farei isso imediatamente ─ disse Marigny. 

─ Á César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Não é isso o que dizem as escrituras? ─ arrematou ele, levantando-se do seu trono e dando por encerrada a reunião.

“Todo César, um dia, também encontra os punhais de Cássio, Bruto e Casca”, pensou Carlos de Valóis, com um esgar de sorriso, que não escapou á Nogaret. 

─ Messire de Valóis parece não gostar muito das nossas propostas ─ disse ele.

─ O que me incomoda, Messire de Nogaret, não são as vossas propostas, mas os sentimentos e as motivações que o levam a fazê-las ─ respondeu Valóis.

Não é difícil imaginar porque o rei e seus ministros, vendo a riqueza ostentada pelo Templo, em contraste com a miséria que grassava pelo restante do país, logo tivessem pensado em uma solução dessas. Aos olhos daqueles senhores, nada parecia mais correto e natural. A riqueza do Templo, na França, havia sido amealhada através de donativos feitos pelos nobres franceses e pelo povo para que os Templários e os Hospitalários, como soldados de Cristo, defendessem as possessões cristãs conquistadas durante as cruzadas. Mas as cruzadas terminaram e o reino cristão do Oriente não existia mais. Não havia mais nenhuma possessão cristã na Terra Santa para ser mantida com esses recursos. 

Por outro lado, os Templários não eram mais uma Ordem militar. Pelo menos, não tinham mais essa característica. Se quisessem continuar monges, tudo bem. Que sua fidelidade fosse dada ao papa e a Roma, mas sua riqueza pertencia ao povo da França e a seu rei. Todas as Ordens religiosas deviam adotar as ideias dos franciscanos, pensavam Nogaret e Marigny. Viver de acordo com suas propostas teológicas e estatutárias. Ascetismo, pobreza, assistência aos doentes e desabrigados, educação do povo. Nada de acumular poder econômico e político. A riqueza material era incompatível com o objetivo das Ordens religiosas. Destarte, nada mais justo do que se apropriar, pura e simplesmente, dos bens que elas possuíam.

Assim, Marigny, em nome do rei da França, solicitou ao tesoureiro do Templo, um monge chamado Jean de La Tour ─ que por sinal já tinha servido o rei como seu próprio tesoureiro ─ um empréstimo no valor de 300 mil florins em ouro. Era uma soma milionária, que correspondia à renda anual de uma cidade como Bolonha ou Siena, ricas repúblicas italianas que haviam enriquecido no comércio com o Oriente. Não podendo resistir a persuasão do rei, o tesoureiro do Templo, em Paris, entregou-lhe toda essa fortuna, sem pedir o aval do Grão-Mestre Jacques de Molay, que nessa altura encontrava-se em Chipre, cuidando dos interesses da Irmandade. Também não exigiu do monarca francês nenhuma garantia de que esse empréstimo seria ressarcido. Contou, para isso, com a cumplicidade de Hugues de Peyráuld, o Inspetor-Visitador da Ordem, segundo em comando, logo após de Molay.

Em princípios de 1307, de Molay chegou a Paris e tomou conhecimento da temerosa operação realizada por Jean de La Tour. Foi logo destituindo o pródigo tesoureiro, aplicando-lhe uma duríssima sanção, que acabou por levá-lo a um confinamento, na Torre do Templo.

Tudo isso estava previsto nas regras da Ordem. Os Templários haviam feito sucesso como financistas justamente pela honestidade e pelo zelo com que administravam os bens que lhes eram entregues. A fidúcia era a sua maior garantia. Por outro lado, o dinheiro que a Ordem manipulava não lhes pertencia. Constituía propriedade das pessoas que investiam em seus negócios, dos depositantes de suas casas bancárias e principalmente, da Igreja, pois o Templo era uma Ordem monástica. E embora fosse autônoma em sua administração, ela devia obediência ao papa e satisfação aos seus parceiros comerciais. 

Compreende-se a ira de que Jacques de Molay foi tomado quando, ao mandar examinar os livros do Templo em Paris, como usualmente fazia quando voltava de uma viagem, descobriu a “ação entre amigos” realizada pelo seu tesoureiro em proveito do rei da França. 

─ Irmão tesoureiro ─ disse De Molay a La Tour ─ posso entender que tenha sido pressionado e resolveu, por sua conta, liberar esse empréstimo ao rei, mas vós sabeis que não tinha autoridade para isso, não é? 

─ Sim, Irmão Grão-Mestre ─ respondeu de La Tour, com certa arrogância ─, mas eu fui autorizado pelo Irmão Peyráuld. Ele, como Inspetor – Visitador da Ordem garantiu-me que a operação podia ser realizada. 

─ Então ambos terão que responder por essa violação das nossas regras ─ disse de Molay. ─ Que confiança poderemos inspirar em nossos parceiros se entregarmos, sem garantias, aquilo que não é nosso? Sabeis que toda a nossa estrutura está amparada na fidúcia. Se perdermos a confiança de quem entrega seus bens à nossa guarda, será o fim da nossa Ordem. 

─ Mas estamos falando do rei da França ─ insistiu De La Tour.

─ E eu estou falando de uma organização que representa toda a cristandade ─ retrucou de Molay.

E a coisa ficou assim. De um lado a vontade política de um rei obstinado, de outro a resistência ética de um monge teimoso. O conflito se tornara inevitável.

Essa era a questão. Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão tinham se tornado os homens mais ricos da Europa. Era um estranho paradoxo. A Ordem era rica, mas seus membros não podiam dispor de absolutamente nada dessa riqueza para uso próprio. Os Templários, salvo aqueles que se corrompiam e acabavam se aproveitando da situação em proveito próprio ─ e sempre os há, em todos os tempos e lugares ─ viviam de maneira simples e morriam pobres. Porque nessa forma de viver estava a sua divisa: Non nobines Domini, non nobis, sed nomine tuo da gloriam. 

Assim, destituir e mandar prender Jean de La Tour era o mínimo que ele podia fazer. Mas de La Tour, como tesoureiro da Ordem, não manipulara tanta riqueza em vão. Ele tinha estendido a sua rede de influências por toda a nobreza francesa e gozava de alto prestígio entre as autoridades civis e eclesiásticas. Além de tudo, granjeara a amizade e a proteção do Inspetor-Visitador, Hugues de Peyráuld. 

Entretanto, De Molay logo descobriria que o vultoso empréstimo concedido ao rei não tinha sido obra apenas de La Tour, mas também havia sido realmente autorizado pelo próprio Hugues de Peyráuld na qualidade de maior autoridade do Templo, na Europa, na ausência do Grão-Mestre geral. 

O conflito entre Jacques de Molay e seu segundo em comando acirrou-se. Ele já vinha de algum tempo, mais propriamente da época em que de Molay fora eleito Grão-Mestre geral. Hugues de Peyráuld fora o seu rival direto para esse cargo e contara com o apoio de Filipe, o Belo. Mas sendo a Ordem independente e a eleição realizada internamente, onde só votava um colegiado formado pelos seus próprios membros, a influência de Filipe, o Belo, foi mitigada, pois um grande número dos eleitores se encontrava fora da França, longe, portanto, das pressões que ele pudesse fazer. Assim, de Molay ganhara a eleição, com o apoio do papa da época, e tanto o rival Peyráuld quanto Filipe, por certo, não devem ter ficado nem um pouco contentes com essa situação. 

Entretanto, o caso da destituição e prisão do tesoureiro do Templo, em Paris, provocou a ira do rei. Ele exigiu imediatamente a liberdade e a reintegração de Jean de La Tour em seu cargo de tesoureiro, com o que o velho e teimoso comandante Templário não concordou. Irritado, o rei solicitou ao papa que interferisse no processo, pois este, como comandante supremo da Ordem, era a única autoridade a quem ele poderia recorrer, no caso.

Clemente V não tinha a têmpera do irascível monge-cavaleiro. Sem coragem para afrontar o rei, foi logo atendendo ao seu pedido. Dessa forma, sendo o papa seu superior hierárquico, de Molay não pode negar e foi obrigado a libertar e reintegrar o pródigo tesoureiro no seu cargo. 

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Jacques de Molay cumpriu a ordem, mas ficou tão irado, que amassou e jogou a carta do papa no fogo, episódio que Peyráuld deve ter aproveitado para indispor ainda mais o velho e teimoso monge comandante com o Supremo Pontífice.

Além disso, de Molay tinha pensado em substituir Hugues de Peyráuld no cargo de Inspetor-Visitador da Ordem. Não desconhecia as relações pouco profissionais que este mantinha com o rei francês e temia que ele estivesse mais interessado em resolver os problemas de Filipe do que defender os interesses da Ordem. A par disso havia aquelas insinuações, feitas por alguns Irmãos, de que Peyráuld andava confidenciando demais com Nogaret, e que muitas das maledicências que esse ministro estava assacando contra a Ordem teria como fonte de informação o próprio Inspetor-Visitador. De Molay não queria crer nisso, mas do jeito que as coisas estavam caminhando, seria melhor se prevenir. Mas não só teve que engolir a reintegração do pródigo de La Tour como tesoureiro, como também a confirmação de Peyráuld no cargo de Inspetor-Visitador. 

Tudo isso deve ter dado o que pensar a de Molay. Ele agora tinha certeza que as coisas não iriam parar por aí. O inquérito que ele solicitara ao papa estava demorando muito para ser iniciado. A campanha de difamação que os advogados de Filipe estavam fazendo contra a Ordem estava ficando cada dia mais forte. 

Era preciso pôr as barbas de molho.

Era a manhã do dia seis de outubro de 1307. Os soldados que guardavam a porta Saint Denis não estranharam aquele estranho cortejo de cinquenta cavaleiros templários escoltando quatro carroças carregadas com feno, deixando a cidade de madrugada. Era uma cena cotidiana aquela. Usualmente o Templo, em Paris, costumava mandar suprimentos ás demais preceptorias localizadas em outras cidades da França. Afinal, Paris era a sede da organização. Dali saíam armas, vestimentas, armaduras, mantimentos, forragem para os animais e outros produtos que o Templo recebia de suas propriedades e distribuía ás suas unidades em outras localidades. Isso era comum, embora a maioria das preceptorias templárias, especialmente nas cidades mais importantes da França, fossem praticamente autossuficientes na produção de alimentos e outros implementos. 

De qualquer modo, a troca de mercadorias era comum entre as unidades da Ordem. Dessa forma, nenhuma estranheza causou aquele comboio, capitaneado pelo próprio Preceptor de Paris, o monge-cavaleiro Gerard de Villiers, que ao passar diante do sargento comandante dos arqueiros encarregados de vigiar aquela porta, saudou-o com o braço estendido e a mão aberta com o polegar em riste formando um ângulo reto com o indicador, sinal característico dos Templários para saudar pessoas não pertencentes a Ordem. O sargento, que não gostava daqueles arrogantes cavaleiros de manto branco, não fez mais que uma imperceptível reverência com a cabeça.

“Bando de veados filhos da puta”, murmurou, olhando o cortejo de carroças que passava e os altaneiros cavaleiros em suas cotas de malha metálica, cobertas pelo manto branco, com a cruz vermelha no peito. Nem estranhou o peso das enormes carroças, que eram arrastadas, cada uma por quatro fortes cavalos. Passaram, rangendo nos eixos, pela grande e pesada porta da cidade, tomando, em seguida, a estrada para o castelo de Gisors. Nada de estranho havia nisso porquanto Gisors era uma das preceptorias templárias mais próximas de Paris. Isso pareceu normal para o rude sargento. O que não lhe parecia racional era ocupar tantos cavalos para transportar uma carga que devia ser tão leve. Mas aqueles Templários eram mesmo uns pródigos. Eram tão ricos e arrogantes que não se importavam com a ostentação. Só pensava no aborrecimento de ter que sair do seu sossego, naquela hora da madrugada, para abrir o portão para aqueles desgraçados cavaleiros de mantos brancos, que passavam por ele e o cumprimentavam daquela forma altaneira e fria, como se ele fosse um verme.

Se tivesse a curiosidade de ver o que se escondia em baixo daquele feno todo, algumas semanas depois o carrancudo sargento provavelmente teria subido de posto, ou no mínimo ganharia uma gorda recompensa. Pois naqueles carroções, cujas rodas deixavam profundos sulcos na estrada, estavam sendo transportados, nada mais, nada menos, que todo o tesouro do Templo de Paris, que Jacques de Molay, no maior segredo, contando apenas com a cumplicidade do Preceptor de Paris e um grupo de fiéis cavaleiros, estava pondo a salvo. De Gisors o tesouro seria depois levado por barcaças, que desceriam o Sena até o Porto de La Rochelle, onde seria embarcado em navios templários lá ancorados. Dali seguiria, parte para a Escócia, parte para Portugal, onde ficaria fora do alcance dos inimigos da Irmandade. 

Isso era parte do plano que o comandante do Templo arquitetara, para o caso de acontecer o que ele temia, ou seja, um ataque frontal à Irmandade, como se prenunciava naqueles primeiros dias de outubro de 1307. Isso ele tinha certeza que aconteceria, mais cedo ou mais tarde. Só não sabia quando seria. Por isso havia traçado planos para uma possível sobrevivência da Ordem, que seria posto em prática caso alguma coisa acontecesse e ele ficasse impossibilitado de dirigi-la. Daí o seu empenho em salvaguardar o tesouro monetário da Irmandade. Iriam precisar dele no futuro. Esse tesouro agora estava a salvo. Mas sua maior preocupação, agora, era o outro tesouro. Esse, se caísse em mãos estranhas, poderia sim, causar uma catástrofe sem precedentes em todo o mundo cristão.













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